SANTO KAOS
- Victor Coscar
- 15 de jun. de 2020
- 32 min de leitura
Atualizado: 15 de jun. de 2020
Dia 24 de dezembro de 2019, 23:57h. Dover, Condado de Kent, Inglaterra. Todas as famílias estavam reunidas em suas respectivas casas comemorando a chegada da Noite Feliz. Os apetitosos banquetes ornamentados já tinham sido servidos com muita fartura nas estâncias. Estavam todos extasiados de espírito natalino. Todos, exceto os moradores da casa número 58 no fim da avenida.
- Marta, abrace as crianças! – Disse o homem, seu marido.
Uma mulher patologicamente pálida, bem melancólica e inexpressiva deu um abraço afrouxado e pouco maternal em seus filhos chorões. As janelas estavam cobertas por gotículas congelantes. Havia uma geada torrencial envolvendo a casa número 58, cujas outras habitações adjacentes não sofriam com esse clima tão severo. A árvore de Natal daquela família era um grande pinheiro desenfeitado que alcançava perfeitamente o teto do recinto. O pinheiro tinha alastrado suas raízes pelo chão, paredes e teto. O interior do imóvel estava desnivelado e repleto por rachaduras devido aos ramos espalhados.
Sinos natalinos ressoaram como um eco agudo dentro da casa. Os vidros das janelas explodiram, deixando invadir todo aquele frio cortante que inundou a residência em unidades de segundos. As crianças gritaram. Do lado de fora, era como se estivesse tudo completamente silencioso. O som dos berros das crianças não ultrapassavam as raízes do pinheiro. A residência número 58 tornara-se uma gaiola à prova de som. Todos os meios de fuga eram bloqueados pelas ramificações.
Uma sombra de três metros surgiu atrás daquela família após um baque apoplético no soalho que fez subir e esparramar uma camada densa da fuligem originada da chaminé. Vultos delinquentes disseminaram-se pela casa, quebrando tudo o que fosse possível quebrar.
Quando o relógio alcançou meia noite, a casa invadida por raízes parasitárias de pinheiro desapareceu num sopro evasivo, remessando os seus residentes para o inexplicável além.
Era uma dimensão fria. A tempestade de gelo ocultava praticamente toda a visão que se poderia ter com os olhos. Era um local triste. Um ambiente agonizante. Um grito demasiadamente forte não seria capaz de ultrapassar o volume das correntes gélidas de ar que entravam em conflito de direções. Em geral, seguiam para o Sul. O solo coberto por camadas grossas de neve tremeu. Outro tremor. Eram passos de algo grande. Uma sombra volumosa, corcunda. Tinha grandes pernas que angulavam iguais as pernas de um bode. Em sua resguarda vinham duas sombras de lobos caminhando na mesma velocidade. Além disso, ouviam-se os crocitos de dois corvos sobrevoando por perto da sombra maior. A entidade ergueu a face oculta pela tempestade e encarou o sonhador. Possuía olhos amarelados vibrantes.
O nascer do Sol aqueceu as estradas cimentadas da cidade, antes resfriadas pelo frio ameno da noite. Inundou as janelas com os raios ultravioletas que transcenderam a atmosfera. Criou-se uma penumbra entre o blackout e a parede do quarto de Simon. O rapaz tinha cabelos negros e lisos. Nariz arrebitado e bochechas naturalmente rosadas e côncavas. Era um jovem alto: um metro e oitenta e três centímetros. Tinha o corpo e o rosto delgados a ponto dos seus ossos zigomáticos se destacarem excessivamente. Seus lábios finos denunciavam uma possível e tênue falta de ferro no sangue.
Simon despertou. Levantou-se somente após ficar oito minutos, inerte, olhando para o teto, enquanto uma faixa solar lhe cobria o rosto, queimando-lhe a epiderme em julgamento pela sua apatia. Observava as moscas Dermatobia hominis, popularmente conhecidas como moscas varejeiras, sobrevoarem por cima do seu corpo, atraídas pelo cheiro da decomposição. Ele abriu a primeira gaveta do gaveteiro acoplada ao lado da cama e pegou uma caixa de remédio escrita “Anafranil SR 75”. Alguém bateu na porta e em seguida abriu.
- Filho, o café da manhã já está na mesa. – Disse um homem alto vestindo um terno que até os leigos em assunto de vestimenta e moda saberiam que era de grife. Este homem tinha uma bala de chumbo alojada na testa com orla de escoriação equimótica.
Possuía também outra bala alojada acima do lábio superior além de apresentar diversas orlas equimóticas proveniente de projetil de arma de fogo por todo o seu corpo. O sangue esvaia-se através da parte inferior das bordas. O homem desapareceu ao fechar a porta do quarto.
Tais imagens correram rápidas aos olhos sonolentos de Simon. Seus dentes superiores e inferiores acostaram-se e as pupilas dilataram para os olhos se manterem na realidade. Simon pensou. Todavia, era algo recorrente. Situações lúgubres que lhe espavoria e lhe torturavam com a incógnita da incerteza sobre a realidade e a alucinação. Ele sentiu um gosto amargo na região da tonsila lingual. Tal dissabor vinha subsequente a uma sensação de queimação no esôfago.
Simon saiu do quarto sentindo em seu corpo uma densidade gravitacional de mais um dia que não valia a pena ser vivido. Ele pôs a mão em sua garganta, como se algo lhe incomodasse lá dentro.
- Bom dia, Simon. – Ana, a empregada da família, que realizava serviços domésticos para sua mãe há mais de 10 anos, cumprimentou o rapaz que ela viu crescer.
- Minha garganta. – O menino se queixou. Tinha saliva abundante armazenada próximo aos lábios.
Ana de repente travou seus pés no chão enquanto segurava um balaio de roupas e girou o pescoço para falar com Simon.
- Está doendo?
- Está podre. – Ele explicou num tom desanimador.
- Você precisa de um banho gelado para despertar, menino! – A mulher baixinha e simpática comentou ao retornar para suas atividades.
Simon desceu os degraus de mármore que davam acesso ao primeiro andar. Passou pela sala da televisão, por dois banheiros, pela sala de recepção e virou à direita para adentrar na sala de jantar. A mesa estava vazia. Jaqueline, a cozinheira, saiu de um corredor arrastando um carrinho de dois andares portando utensílios de mesa. Ela forrou a superfície com um tecido amarelo de seda e pegou os pratos.
- Bom dia, Simon.
- Bom dia, pessoal! – Adentrou no recinto um homem calvo. Tinha pouco cabelo nas laterais da cabeça. Era corpulento e possuía uma leve rosácea no rosto. Mãos pequenas e gordinhas. Vestia-se com uma alinhada camisa polo azul e calça brim cinza claro. Carregava um celular na mão e outro no bolso frontal da camisa.
Simon estava olhando para os vértices do cômodo franzindo toda a face numa demonstração de reprovação. Seu padrasto ignorou completamente a sua inquietação.
- Jaque, pode me trazer uma vitamina de abacate e cacau?
- Sim, senhor! – A cozinheira interrompeu a arrumação da mesa e retornou para a cozinha.
- Essa casa está cheia de ratos. – Simon sussurrou. – Tem muitas folhas secas no chão.
- Já tomou o Anafranil? – Paulo puxou uma cadeira para se sentar à mesa. Estava muito distraído com um dos celulares. Claramente tinha perguntado algo ao enteado só para não transparecer seu desinteresse absoluto, entretanto era muito óbvia a sua indiferença com a situação.
Uma mulher alta para a média feminina brasileira, trajando um esporte fino lilás florido, cabelos ruivos e longos bem hidratados, pele impecavelmente tratada com cuidados caseiros e estéticos em clínicas especializadas e unhas grandes pintadas de vermelho oriental, adentrou no recinto. Seu nome era Andrea. Era mãe de Simon e atual esposa de Paulo.
- Bom dia, família.
- Bom dia novamente, querida! – Respondeu o marido. – Esqueceu que vai me dar uma carona para o trabalho hoje?
- É verdade! – Ela respondeu enquanto espiava a hora em seu relógio de ouro.
- Posso tomar minha vitamina? Dá tempo?
- Sim, só tome rápido porque eu estou atrasada. – Andrea passou a mão no cabelo atrapalhado de Simon e o beijou na cabeça. – Como está essa cabecinha confusa?
- Para, mãe.
Ela saiu da sala de jantar ao mesmo tempo em que abriu a bolsa para atender a uma chamada no celular.
Andrea era juíza de direito da vara cível e Paulo era comerciante no ramo alimentício. Ele possuía três churrascarias da mesma rede: duas no Rio de Janeiro e uma em São Paulo.
“Reflexo do auto.
Não importa sua religião,
nem mesmo a ciência.
Conhece só a dor.
E ninguém carrega a cruz que deve,
é algo trivial?
Ninguém conhece a dor.
E nem querem conhecer.
Porque... Por que?
é algo trivial.
Mas se fosse mesmo,
todo mundo saberia.”
Um homem de cabelo e barba grisalhos, trajando um blazer cinza listrado, deixou um pedaço de papel amolgado em cima da mesa de centro do seu consultório. Simon estava deitado em um divã.
- Então, Simon. – Disse o psiquiatra. – O que você quer dizer com isso que escreveu?
- O senhor não sabe? – Simon retrucou-lhe.
- Posso dizer que você não se sente compreendido, mas também há termos adicionados, postos sem significância. Ou só tenha significado para você, autor. – O Dr. Lúcio entrelaçou os dedos, apoiando as mãos unidas em cima das pernas cruzadas.
Surgiu um fio de suor escorrendo pela testa de Simon. Ele estava levemente ofegante. O ar condicionado do escritório estava ligado.
- Então, Simon, como hoje é dia 23 de dezembro, será nossa última consulta do ano. – O psiquiatra apanhou uma agenda de couro sintético. – Vou lhe marcar para o dia 4 de janeiro. Correto?
- Sim.
- E hoje lhe entregarei mais uma receita para continuarmos com o seu tratamento. Talvez eu faça algumas modificações na medicação. Ainda estou pensando nisso.
- Tudo bem. – O rapaz sentou-se no divã.
- Preciso apontar um quesito para continuarmos o seu tratamento. – Seu médico apoiou os braços nas braçadeiras da poltrona que o tornava proeminente. Estava imponente encarando seu paciente. – Eu preciso fazer outro reajuste de valor para a próxima sessão, para assim conseguirmos sustentar nosso trabalho que viemos desempenhando há um bom tempo.
- Doutor, o senhor fez reajuste no mês passado. – Simon o questionou.
- Sim, mas eu tentei ser brando. O seu problema não é simples, Simon. – Disse o homem. – Nós precisamos mantê-lo seguro.
O rapaz solitariamente incompreendido se levantou. Puxou do bolso um envelope escuro e entregou-o ao seu médico. Era o pagamento da sessão. Ele se dirigiu para a porta.
- E, Simon! Feliz Natal. Tenha um ótimo ano novo. Qualquer problema eu estarei disponível pelo Whatsapp.
Andrea sentia-se empolgada. Com a ajuda de suas duas empregadas: Jaqueline e Ana, ela finalizava os preparativos para a sua ceia natalina. Na sala principal, havia uma grande árvore de natal verde com as extremidades brancas que imitavam a neve. Era uma árvore grande e maravilhosa. Ornamentada por bolas vermelhas e uma grande estrela dourada de led. Num grande aparador de mármore travertino, Andrea montara o presépio de natal presenteado pelos seus pais há 2 anos.
A pequena Lídia, filha de Paulo, patinava pela casa com seus patins cor de rosa. Sua madrasta adicionou headphones abafados em seus ouvidos para que a enteada se distraísse o suficiente patinando e ouvindo música. Assim, Lídia não lhe incomodaria a organizar a cerimônia nem atacaria os doces encomendados.
- Mãe! – Gritou Alice. A filha mais velha de Andrea.
- O que foi? Estou ocupada!
- Onde está o meu tênis novo que comprei pra correr?
- Ana, ajude-a a encontrar isso, senão a Alice não vai nos deixar em paz! – Disse Andrea à sua ajudante.
Simon chegou. Bateu a porta e passou ligeiro pela sala até alcançar o primeiro degrau. As varejeiras vieram atrás dele, perseguindo-o a todo instante de sua atual vida.
- Como foi na terapia? – Andrea perguntou.
- Ele quer aumentar o valor da sessão. – Respondeu seu filho. – Novamente.
- Está na hora de você superar a morte do seu pai, Simon. – A mãe do rapaz disse de tal forma como se já quisesse comentar sobre isso há algum tempo. Precisava apenas criar uma oportunidade como essa. – Você já é um adulto. Eu perdi um marido, você e sua irmã perderam um pai. Um grande pai!
Simon retorceu os lábios finos e sem graça num protesto de impaciência por ouvir asneiras. De repente subiu com toda energia para o segundo andar. Passou pelo seu progenitor, alvejado de balas, lhe encarando, sentindo o frio que emanava da carne morta do homem. Foi para o quarto observando a vanguarda a qual jazia o cadáver animado de Carlos. Ao adentrar em seu refúgio, sentiu calafrios. Folhas secas do inverno inundaram o chão. Ele correu para fechar a janela que ventava horrendamente. Mas, quando a alcançou, a corrente de ar gélido que sentia bater no rosto deixou de existir antes mesmo que fechasse o vidro, pois já estava fechada. Não havia folhas secas no chão. Simon lançou seu próprio corpo ao leito e berrou. Todos os membros familiares presentes naquela residência o ouviram até que o travesseiro abafasse seu urro desesperado.
- Aaaah! Ele quer fazer cena. – Disse a mãe.
- Mas... senhora... – Jaqueline a interrompeu quando sua patroa estava prestes a apontar para algo que provavelmente deveria ser arrumado. – Faz uma semana que eu espiei Simon testando sozinho e desnecessariamente a ponta afiada de uma tesoura. Não tinha ninguém para servir de plateia. Eu o tirei de lá e dei-lhe um chá de camomila.
- Meu filho é sensacionalista! Carlos nos deixou há 2 anos. Todos nós superamos como pudemos. – Andrea se sentou no sofá e pegou seu cigarro eletrônico. – Tudo bem que Simon estava com ele no carro. Entretanto o momento de superar isso já passou. Ele não destranca a faculdade porque quer moleza.
- Mas, senhora... – Jaqueline tentou dialogar.
- Mas, nada! Jaque, se você está com pena, leve outro chá para o Simon.
- Sim, senhora. – A cozinheira se retirou.
Andrea se viu sem as duas ajudantes na sala de estar. Ela emitiu um som colérico, porém contido. Seu objetivo, que era organizar o recinto para o dia seguinte, fora fracassado momentaneamente. Ela subiu para o segundo andar e entrou no quarto. Bateu a porta, produzindo um baque ecoante.
Carlos era um homem muito dedicado aos estudos. Formou-se em direito aos 23 anos. Antes disso já havia conquistado a carteira da OAB. Sua monografia fora tão aclamada que Carlos foi convidado por diversas universidades a palestrar sobre o tema explorado. Participou de um disputado processo seletivo e passou para a vaga de emprego em um renomado escritório de advocacia criminal. Aos 26 anos inscreveu-se para o concurso público da magistratura estadual e aos 27 foi nomeado Juiz de Direito do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Casou-se com Andrea 5 anos após, uma advogada pedante. Dessa união, nasceram dois filhos: Alice, em 1996, e Simon, em 2001.
Em outubro de 2017, um Jeep preto fosco cercou o carro do magistrado, próximo a sua residência, e três homens saíram do veículo segurando metralhadoras. Eles alvejaram o carro de balas. Simon se abaixou e levou apenas um tiro de raspão no ombro direito. Carlos Henrique, seu pai, morreu na hora.
Um herói? Morreu assim. Todavia, para Simon, seu pai nunca foi presente em sua vida mesmo estando tão por perto. Andrea era uma mulher muito vaidosa, consumista, egocêntrica e manipuladora. Ela sempre defendeu a visão formidável externada da família Koeller, mas nunca cuidou internamente dessa união. Alice e Simon eram muito diferentes, mas se desenvolveram a partir da mesma origem problemática: a negligência dos pais perante seus filhos. A menina tornara-se arrogante, agressiva e mal humorada no âmbito familiar. Já o menino: acuado e ansioso. Sentia-se desprotegido.
O motivo do assassinato do magistrado nenhum personagem teria a chance de explicar durante o prosseguimento da história, já que ninguém tinha o conhecimento do fato a não ser Andrea, que nunca confessaria o segredo do falecido cônjuge. Tal acontecimento infausto aconteceu porque Vossa Excelência não vendeu uma importante sentença para absolver sumariamente um traficante de armas acusado por homicídio triplamente qualificado.
Um servidor público fadado de eticidade e princípios morais. Certo? O Juiz Carlos Henrique era investigado pelo CNJ (Conselho Nacional de Justiça) e, logo, não queria correr o risco em negociar tal decisão do processo que caíra em suas mãos, como costumava fazer. Descontente, o réu condenou-lhe à pena capital, o qual o criminoso se fez de Estado, aplicando ao magistrado o devido processo legal que ocorre no mundo do crime.
Devido ao falecimento do magistrado, o CNJ parou a investigação, pois, apesar de tê-lo custado a vida, o Juiz fora assassinado por motivo aparente do devido exercício regular do ofício. Morreu com sua integridade moral intocável.
Jaqueline deu duas batidas na porta do quarto de Simon e entrou. O menino estava deitado na cama com roupa de rua e tênis. Estava desleixado há anos. Ela caminhou até a escrivaninha e apoiou o pires com uma xícara de chá de camomila. Assoprava para esfriar o líquido.
- Simon, eu preparei pra você.
Simon não se manifestou. Jaqueline virou de frente para a cama segurando a xícara. Ele viu um fluxo líquido sair de cada olho descolorado daquela mulher. Tal líquido se aproximava nas extremidades bucais e funilavam-se para cair diretamente no recipiente o qual o chá estava depositado. Emanava fumaça em demasia, demonstrando que estava pelando. O rosto frontal dela derretia, mas Jaque não expressava dor. Simon se assustou. Gritou silenciosamente e levou as mãos em sua garganta apodrecida que, para ele, cheirava a putrefação.
- O que houve? – A cozinheira também se intimidou com a situação. Num momento o rapaz estava totalmente apático. De repente, tornou-se pávido.
- Simon? Simon?
- Eu... eu... eu quero ficar sozinho. – Ele respondeu educadamente.
- Está certo. – Jaque botou o pires na escrivaninha. – Só assopre antes de tomar. Se precisar, me chame.
Isolado no quarto, Simon se recostou na parede da sua cama. A boca estava entreaberta. Ele sentia muito calor. Ouviu um ruído interno. Algo que se mexia em sua garganta pútrida. Uma ferida se abriu, causada por um roedor que mastigava o tecido em estagio de putrefação. Cavou seu pescoço de dentro para fora. Simon suspirou fundo, erguendo a cabeça devido à tamanha aflição e impossibilidade de se defender do invasor que queria sair. Seus olhos se reviraram como se ele estivesse morrendo. Desmaiou em sua sonolência após o roedor finalizar a saída da cavernosa garganta podre de Simon.
Jaqueline estava de costas para a porta do quarto do menino. Ela tinha um bom salário trabalhando para os Koeller. Todavia era uma aflição diária presenciar toda a perturbação mental óbvia e os gritos silenciosos de sofrimento interno que Simon sentia. Todos negligenciados. Jaque botou a mão no peito. Sentia-o pesado, ocasionando uma leve dificuldade de respirar, fruto da ansiedade. Imaginava que a qualquer instante o jovem Simon cometeria uma loucura e ela não queria estar presente naquela casa no momento do ato final.
Nove meses atrás: Andrea adentrou no consultório da Dra. Tereza. Uma mulher de aparência austera. Baixa, magra e vendedora de sua inestimável intelectualidade pelo visual apresentado, principalmente com seus óculos grandes de formato trapézio isósceles da estimada marca Prada e cabelos curtos propositalmente grisalhos estilo Chanel.
As paredes do consultório estavam tomadas por quadros expondo seus diplomas e prêmios adquiridos durante a sua trajetória. Tereza retirou os óculos com a mesma mão que segurava uma caneta a qual estava utilizando para fazer anotações.
- Bom dia, Dra. Andrea. – Disse a psiquiatra de seu filho.
- Bom dia, Dra. Tereza. – Ela retribuiu.
- Como anda a rotina no tribunal? – A médica disse apenas para descontrair levemente do assunto principal logo a seguir.
- Como sempre, muitas audiências. – Andrea girou o pulso para observar seu relógio. – E logo terei a primeira do dia. Preciso correr para chegar ao gabinete a tempo.
- Serei breve, Andrea. – A doutora Tereza lançou um sorriso de jogo de cintura, entre simpatia e antipatia para com aquela mulher. – Os delírios melancólicos clássicos: culpa, ruína e hipocondria. Vamos dar foco ao último item nesse momento.
A médica utilizava abusivamente a linguagem manual enquanto explicava. Fazia desenhos em folhas, mas possuía excelência em esclarecer situações complicadas aos seus pacientes e familiares.
- O que a senhora me relatou no telefone, sobre Simon dizer frequentemente que perdeu seus órgãos internos...
- Eu disse um ou outro, não todos! – Andrea lhe interrompeu.
- Tudo bem, mas aqui em minha sala, Simon relatou que todos os órgãos internos do corpo estavam ausentes. Ele se sentia um cadáver ambulante.
- O que eu faço? – Andrea se levantou impaciente. – Melhor interna-lo em um hospital psiquiátrico logo. Isso é loucura!
- Acalme-se! – Disse Tereza, levantando da poltrona e solicitando que Andrea se sentasse novamente. Ela acatou. – Eu compreendo que, quando o problema é com nossos filhos, temos mais dificuldade em lidar que em qualquer outra situação. Simon desenvolveu o cúmulo do delírio de hipocondria, mais conhecido como Síndrome de Cotard, além de apresentar ostensivamente humor depressivo.
- Meu filho? – Ela novamente se exaltou. – Simon não tem expressões tristonhas. Só me parece desinteressado por coisas que antes lhe alegravam. Momento da vida. Ele perdeu o pai, afinal. Não me passa essa impressão de que tenha depressão. Não concordo que ele tenha isso.
- Doutora, o humor característico do melancólico não é a tristeza, é a indiferença. Simon tem depressão psicótica grave! Tem delírios e alucinações!
Andrea se levantou da cadeira. Desta vez, calmamente. Estendeu o braço para cumprimentar Tereza e a mesma lhe cumprimentou, sem entender o que a mulher pretendia, pois a médica estava no meio de seu diálogo esclarecedor do problema do paciente. Andrea direcionou-se até a porta e saiu do consultório. Nunca mais retornou. Nem seu filho.
A entidade do sonho recorrente de Simon caminhara entre passos vagarosos e pesados. Sua forma era ocultada pela escuridão da nevasca. Somente se podia perceber que era grande. Muito maior que um homem adulto consideravelmente alto em qualquer região do mundo. Os dois canis lupus e o casal de corvos o seguiam fielmente. Aquele ser observou o horizonte e seus olhos amarelos vibrantes avistaram a civilização. O céu trovejou.
Simon acordou. Moscas varejeiras sobrevoavam por cima de seu corpo trajado pela roupa do dia anterior. Ele viu as horas no relógio de pulso: eram 6:23h. Acordara muito cedo.
Algo derramou no chão. O menino ergueu o tronco e deparou-se com a xícara de chá posta em cima da escrivaninha. Simon se esqueceu de tomar, mas ainda estava pelando por indicação de tanta fumaça. E o chá transbordava da xícara de forma demasiada, ridicularizando a lógica, pois era muito líquido vazando daquele recipiente pequeno. Inundou a mesa e caiu no chão. Tinha muita fumaça e bolhas como se o chá transbordado estivesse sendo fervido pelo piso. Simon ouviu um choro de recém-nascido. Ele se levantou e avistou um feto de coloração acinzentada deitado ao chão. O líquido quente do chá lhe envolvia e cobria o corpo disforme, queimando sua pele e fazendo-lhe chorar. Aquilo berrava. Era uma cena perturbadora. O crânio do feto inchava feito um balão de água quente. O ser revirou os globos oculares e morreu após uma grande ofegada.
- Que porra é essa! – Simon sussurrou. Procurou um calçado para sair da cama com a intenção de correr em direção à porta. Quando pisou no chão, tudo aquilo tinha desaparecido, até as moscas varejeiras sobre ele.
O menino girou a maçaneta lentamente e abriu a porta do quarto. A casa estava totalmente silenciosa. O chão impecavelmente encerado. Uma música instrumental soou do andar de baixo. Era um cântico natalino popular. Simon desceu os degraus frios da escada e seguiu o som até adentrar em uma sala enorme. Tinham pisca-piscas de gota de chuva presos nas paredes. Um presépio contendo o menino Jesus no centro, em cima da manjedoura. Maria e José estavam próximos. Além dos demais personagens bíblicos ao redor, haviam colocado a Estrela de Belém acima do menino Jesus, preso à parede. O móvel fora forrado por feltro vermelho. Tinham grandes enfeites, como renas de pelúcia de um metro e meio, contando com os chifres. Bonecos de neve, papais Noeis (um deles tinha um metro e oitenta de altura. Réplica fidelíssima), bengalas natalinas, um grande globo de neve, uma guirlanda enorme dourada e vermelha, ornamentada com vários sinos prateados e candelabros de parede. No canto a direita, onde deveria estar a árvore verde com neve, tinha um grande pinheiro sem folhas e enfeites. Ele arranhava o teto do recinto. Simon estranhou-o, pois sua mãe tinha feito uma troca inesperada, inusitada. Não seria algo que Andrea faria. Passara parte do dia anterior ornamentando sua árvore sintética esverdeada com as pontas nevadas. Então a trocou por um pinheiro sutilmente macabro? – Ele indagou enquanto observava o arranjo dos gnomos carregando caixas de presentes.
Apesar de a casa estar enfeitada para a chegada do Natal, aquele era o cômodo especial que Andrea teria feito para receber quem viesse para a confraternização. Tinha também uma bela lareira elétrica, ar condicionado programado para gelar o ambiente aos 15º célsius, uma máquina de cafés, cappuccinos e chocolate quente com canecas grandes e natalinas dispostas ao lado. Jarros com biscoitos e trufas. E um enorme tapete felpudo branco que cobria quase todo o solo para criar a sensação de neve. Estava tudo impecável. Maravilhoso. Somente o grande pinheiro que, apesar de não parecer desarmonizado com o restante, estava diferindo com o gosto habitual de sua mãe.
A mesa da ceia estava disposta para sete pessoas: Andrea, Simon, Alice, Paulo, Lídia, Vanessa (amiga de Andrea, cuja família não reside na cidade) e Mercedes (A mãe de Paulo). Teriam mais pessoas, todavia Andrea e os pais não se entendem. Então, há alguns anos que os seus irmãos, pais, sobrinhos e cunhados passam o Natal juntos na Califórnia. Já dizia sua mãe que a personalidade de Andrea era terrível. Todavia, mãe e filha eram muito parecidas e por isso provavelmente entravam tanto em conflito. Em relação a família de Paulo, sua mãe viria. Mas Roberto, o irmão mais velho, não. Eles eram brigados por um motivo estúpido.
Às 9:30 da manhã do dia 24 de dezembro todos estavam sentados à mesa para tomar o café da manhã. Simon sentia-se estranhamente bem em comparação às demais ocasiões. Não vira nada diverso do que ele imaginava ser a normalidade para os outros. Às 13:00 horas o interfone tocou para anunciar a entrega do buffet de Natal (parte que era imprescindível ser feita no mesmo dia em que seria servido).
Às 17:00, Mercedes, mãe de Paulo, chegou. Ela era uma senhora delgada de cabelos brancos curtos. Utilizava uma calça vermelha e um suéter branco. Idosa saudável e ativa apesar de seus recentes 80 anos. Quando Lídia apareceu, Mercedes abriu um longo sorriso. Largou o carrinho de presentes que trouxera e curvou a lombar para dar um forte abraço na neta. Em síntese, todos gostavam dela, até Simon. Afinal, ali presente era a única pessoa que compreendia que o rapaz não estava bem e que seus demônios não eram mimo para chamar atenção.
Sobre o pinheiro no lugar da árvore sintética de Natal, Simon não comentou com quem seja. E ninguém que entrou lá na sala natalina também o mencionou. Todos foram para a tal sala. Caminhando e conversando pelo corredor. Andrea abriu as portas com euforia para apresentar à sogra o seu trabalho. Mercedes abriu a boca em gesto de espanto. Estava impecável.
- Meu deus do céu, parabéns, Andrea!
Simon veio atrás de todo mundo. Estava convencido de que o pinheiro fora ideia de ultima hora de sua mãe. Entretanto algo havia de diferente. As paredes ao redor do pinheiro estavam infiltradas com galhos. Metade da lareira elétrica também fora coberta. Simon olhou para aquilo de forma tão indiscreta e por tanto tempo enquanto os outros conversavam, que Mercedes desviou sua atenção.
- Está tudo bem, querido?
- Sim, está. – O rapaz demorou dez segundos para respondê-la.
Todos se sentaram, exceto Alice, que retornou para o quarto. A pequena Lídia jogava um jogo em seu Ipad enquanto os adultos dialogavam. Andrea contara à sogra os deliciosos aperitivos que havia encomendado. Paulo mantinha-se ocupado enviando mensagens relacionadas ao seu negócio. E Simon... bem... Simon observava, intrigado, os ramos do pinheiro crescerem diante dele e infiltrarem-se nas paredes, no teto e no chão. Aquela árvore estava viva.
- Tem certeza de que está bem, querido? – Mercedes perguntou novamente, interrompendo Andrea e pegando-lhe de surpresa com a mente ausente do diálogo.
- Sim... sim! – Simon respondeu vazio. – Tudo. Tudo bem. – Ele apertou as mãos suadas por cima das coxas.
- Mercedes, eu lhe garanto! – Disse Andrea. – O Simon está bem, ele só tem mania de sensacionalismo, não é, meu filho?
De um salto enfurecido, Simon se levantou impulsivo, suas têmporas saltavam na superfície da testa avermelhada. Ele estava colérico. Impulsionou-se para cima da mãe e espremeu a cabeça dela com as mãos enquanto gritava em aclamação ao seu distúrbio mental negligenciado absurdamente por sua progenitora. Esvaiu-se sangue dos tímpanos e dos olhos que se projetaram para fora devido à pressão exercida.
O rapaz imaginou. Levantou-se do sofá, em silêncio, ignorando a mãe completamente. Retirou-se do cômodo.
- Hum! – Sussurrou Paulo, debochado.
O celular de Simon tocou em cima da escrivaninha. Ele estava adentrando no quarto. Apático, pegou o aparelho e direcionou seu indicador para selecionar a recusa da chamada. Mas hesitou. Por fim, aceitou. Disse um “Olá” sem cores.
- Oi? Simon?
- Sim, Daniel. – Disse ele.
- Feliz Natal, meu amigo. – Respondeu-lhe calorosamente. – Estou sem noticias suas faz algum tempo.
- Eu não estava muito bem esses dias.
- Quando isso acontecer ligue para mim, amigo. Não passe por isso sozinho.
- Eu sei.
- Lembra o que eu te falei?
- “Aproveite os momentos de lucidez para escrever ao seu Eu em momentos de escuridão conseguir enxergar novamente o caminho para a luz”. – Simon discursou uma frase tatuada em sua mente por Daniel.
- Exatamente!
- Muito obrigado, meu amigo. Eu sei que não estou correspondendo a sua amizade à altura. Mas... eu agora não consigo.
- Pare de se culpar, Simon. – Daniel disse se expressando firme com as palavras. – Somos amigos há 15 anos. Se eu estivesse com problemas tenho certeza que você me ajudaria.
- Sim, cl... – Simon interrompeu o que iria dizer.
Ele ouviu um ruído rastejante, abafado. Algo que se arrastava de longe. As paredes do quarto vibraram. O menino deixou o telefone em cima da cama, hipnotizado. Seu amigo o chamava sem entender. Simon se levantou da poltrona deslizante e caminhou até chegar à parede atrás da cama. Encostou o ouvido nela. Algo se movia lá dentro. Distante.
Andrea conversava com a sogra na sala especial de Natal. Paulo saiu do recinto junto com a filha para roubar alguns doces. Mercedes perguntou à nora sobre sua mãe. Ela iria começar a falar, mas hesitou.
- Desculpe-me, querida. – Disse a sogra. – Se é algo difícil para você, não precisamos falar sobre.
- Eu e minha mãe nunca nos demos bem. – Andrea respondeu rispidamente. Mas não para Mercedes. Imaginando como se sua progenitora estivesse ao lado dela naquele momento.
- Tudo bem, tudo bem. E quando é que a sua amiga vai chegar aqui?
- Ela marcou comigo às 20 ho... – Andrea se perdeu. Ouvira um som anormal. Algo que se parecesse com encanamento obstruído. Jamais ocorrido antes naquele apartamento.
- Querida? – chamou a sogra preocupada.
Andrea se levantou do sofá, olhando fixamente para a árvore de Natal. Ela via um pinheiro enorme e desenfeitado, sombrio, pontiagudo como em filmes de terror. O ápice do pinheiro havia penetrado no teto e criado uma ramificação de estrela dentro do concreto. Desenhado. As paredes da sala natalina estavam infiltradas por ramos do pinheiro que se espalharam pelo recinto.
- Andrea?
- Você não vê? – Ela sussurrou, ainda observando tudo ao redor.
Quando Andrea olhou para trás, viu e ouviu os ramos vivos avançando para a porta com o objetivo de se alastrar para o próximo cômodo da casa. O som de uma rachadura fez com que ela girasse os calcanhares novamente para a direção do pinheiro, assustada. Havia uma fenda próximo à arvore. A rachadura fora coberta pelos ramos.
Simon adentrou ofegante.
- Que barulho é esse?
- Barulho? – Mercedes perguntou. Para ela estava tudo muito silencioso.
- Você também ouve? – Pela primeira vez, Andrea perguntou algo a seu filho com certa irmandade no tom de voz. De forma mais humilde, de igual para igual. Sem trata-lo friamente como alguém problemático por escolha própria.
Simon observou o recinto. O pinheiro dominou grande espaço.
- Eu pensei que pudesse estar alucinando. – Disse o menino.
- O que? – Mercedes não estava entendendo nada.
- Será que eu também estou?
- Nós dois alucinando a mesma coisa? – Simon retrucou ironicamente, mas preocupado. – Eu sou o problemático da casa, mãe.
- Agora não é hora, Simon! – Andrea saiu da sala às pressas gritando o marido.
Ao adentrar no corredor principal, ela sentiu frio. De repente o ambiente parecia mais gélido. A mulher ouviu um som abafado de conversa. Era de Paulo e Lídia. Estavam na cozinha. Devido ao estresse, sua visão ficou turva. Quando olhou para eles, os viu rindo enquanto comiam alguns doces. Centenas de folhas secas cobrindo o chão, a mesa e os móveis da sala de jantar que Andrea preparara para a ceia de Natal. Além disso, caiam mais dessas folhas secas do teto.
- Amor? – Paulo percebeu que havia algo de errado com sua esposa pela forma de seu comportamento anormal.
- Está frio aqui! – Ela abraçou a si mesma. Saiu da sala de jantar e subiu as escadas direto até o quarto, onde sacou um casaco forte para se cobrir.
Alice adentrou no quarto da mãe. Também vestia vestes para o frio.
- Por que tão gelado?
- Não fui eu! – Andrea abriu o armário e pegou uma cartela de psicotrópicos. – Estou muito estressada.
A mulher se sentou no sofá do quarto, pegou uma garrafa de água mineral do frigobar e ingeriu um calmante traja preta. Após isso, preparou um copo com gelo de Whisky Chivas Royal Salute, 21 anos. Bebeu-o enquanto fumava seu cigarro eletrônico. Neste momento, Alice havia descido até a sala de visitas, onde estava o ar condicionado central da casa. Ele marcava 37.4º Fahrenheit. Por ali, já saia fumaça da boca de Alice. E logo esse frio todo invadiria a casa. A menina pegou o controle e tentou mudar a temperatura. Todavia algo estava errado. O controle não estava funcionando. As pilhas eram novas, pois a própria trocara semana passada. Angustiada, Alice retirou o ar condicionado da tomada.
- Ah! Pronto! – Ela disse irritada.
Não adiantou. O aparelho não desligou. Além disso, soou um apito, indicando o decréscimo da temperatura, de 37,4º para 37.1º. Outrossim, Alice, já incrédula com a paranormalidade do ar condicionado, observou folhas secas planando até o chão. Vinham de algum lugar além de suas costas. No limite entre a sala de visitas e do corredor, as folhas invadiam o próximo recinto com o auxilio de uma corrente fria. Ela ouviu o som arrastado de algo que se movia dentro das paredes de sua casa. Um ruído acompanhado de uma cantiga natalina com sinos instrumentais de fundo musical.
- O que está acontecendo aqui? – Ela indagou.
Andrea desceu a escada, ainda fumando, e uniu-se a Alice. Simon saiu do corredor o qual as folhas secas eram expelidas para a sala. O rapaz se aproximou da família em frente ao aparelho do ar-condicionado.
- Está muito, muito frio. – Ele gaguejou apático.
Paulo, Mercedes e Lídia também vieram para a sala de visitas. Perceberam que os três estavam com o comportamento anormal.
- O que está acontecendo com vocês? – A idosa perguntou preocupada.
Vanessa atravessou o hall do edifício. O porteiro, ligeiro, a reconheceu e conduziu-a para o elevador social que levaria à cobertura de Andrea. Chegando ao 12º andar, a mulher saiu cuidadosamente, carregando consigo uma torta de chocolate com damasco, ornamentada por um embrulho sofisticado. Apartamento 1200: Ela apertou a campainha. Após minutos tentando ser atendida, Vanessa resolveu ligar para o celular de Andrea, Paulo e Alice. Nada. Por fim, a mulher desceu para perguntar ao porteiro o que poderia estar acontecendo. O relógio digital do elevador marcava 20:47.
Simon sentiu-se com tonteira. Mas não uma tonteira que fosse provocada do cérebro para os olhos. Era do mundo externo para ele. Tudo estava desnivelando e seus parentes não percebiam as paredes descendo, outras subindo. Criando-se e extinguindo como um labirinto mágico. Ele abandonou sua irmã, mãe e a família da parte de seu padrasto na sala, os quais estavam muito preocupados com as estranhezas que Andrea e Alice relatavam abobalhadamente. Foi para seu quarto e trancou a porta. Ao girar a tranca, o rapaz teve uma visão: A entidade de seus sonhos mais recorrentes. Andava lentamente pelas sombras de uma colina escura, tornando difícil vê-lo nitidamente. Apenas era possível saber que ele descia a montanha para a civilização. Em seus ombros repousavam dois corvos. Em seus calcanhares, um casal de canis lupus. Carregava algo grande e pesado nas costas. Aqueles olhos amarelos relampejados cegaram a visão de Simon e ele retornou para o quarto.
Simon ouviu os ramos do pinheiro se mexendo novamente por dentro das paredes do apartamento. De onde estava o grito de Andrea chegou até ele. Deu alguns passos para alcançar a janela e tentou abri-la. Nada que adiantava. Chacoalhou diversas vezes o vidro gelificado sem sucesso.
–“Espera ai!” - Seu pensamento exclamou.
Percebeu naquele momento que lá fora estava nevando. Nevando e relampejando. Só que não chovia. Absolutamente incoerente. Mas, afinal, para Simon, nada tinha muita lógica há tempos, começando pela ironia dele ainda viver sendo que a matéria de seu corpo estava em decomposição.
Algo que ocorreu há poucos anos atrás surgiu como um estalo em sua cabeça, uma memória desarquivada por si só. Intrometida. Uma lembrança que estava oculta, esquecida desde o dia em que aquilo acontecera. Retrocesso temporal: Simon encontrava-se em seu quarto. Era dia 24 de dezembro, segundo Natal sem seu pai, o que de fato não lhe causava tanto sofrimento já que eles não tinham muito elo afetivo. Entretanto, Andrea deu-lhe uma tarefa para fazer (na realidade era uma ordem). Ele teria que escrever em todas as 1000 cartas vermelhas do papai Noel: “Olá, eu sou Santa Klaus. O que você gostaria de receber neste Natal?” Eram para doações as quais sua mãe gostava de fazer para sentir seu espírito purificado todo fim de ano. Uma oferta interesseira a Deus.
Simon sabia que sua mãe sentia-se extremamente feliz nessa época. Andrea adorava o clima natalino. Apesar dos inúmeros desentendimentos com a mãe, nessa data elas conseguiam se confraternizar, pelo menos até uma discussão séria posterior ao último Natal de 2018. Talvez seja esse o motivo o qual a mãe de Simon gostava tanto do Natal.
Irritado por tanto escrever, o rapaz deu um soco na mesa. Escreveu debochadamente na próxima carta: “Querido papai Noel, por que não me leva com você? Odeio esse vácuo podre denominado sarcasticamente de vida.” De repente, ele sentiu a necessidade de pegar uma bota qualquer. Simon olhou para seu armário, mas sabia que não tinha botas. Tinha que ser aquelas de cano realmente longo. –Um sopro- Foi o que ele ouviu, Quando direcionou sua visão para a escrivaninha, a carta havia desaparecido.
O quarto de Alice foi o lugar escolhido para vasculhar. A menina não estava em casa, então seria perfeito para encontrar uma bota. Simon procurou. Em sete minutos encontrou uma bege de camurça. Ele a deixou na sala natalina a qual Andrea a preparava todos os anos, ainda nos tempos do seu primeiro casamento. Simon buscou na cozinha uma cenoura e um pote de açúcar cristalino. Despejou-os dentro da bota. Algo lhe dizia que não tinha terminado. Ele sentiu que precisava comprar feno. Foi para a rua à procura do pet shop mais próximo da região e comprou um saco de feno para roedores. Despejou-o na bota. Acionou a lareira elétrica para acender o fogo. Simon não sabia o que estava fazendo, mas sentia a necessidade de fazer aquilo. Lançou a bota na labareda.
- Mas o que é isso? – Sua mãe chegou repentinamente com dez sacolas de compras nos braços. – O que você está queimando ai?
Simon olhou para trás assustado e aumentou a proporção das chamas da lareira elétrica. Enquanto via a bota queimar, ele disse:
- Mitt tilbud (norueguês).
- Você está surtando? – Ela perguntou agressiva.
Na sala de visitas, Lídia, Mercedes e Paulo, agora, também viam os ramos se espalhando e infiltrando-se nas paredes, no teto e deslizando pelo chão que pisavam. Todos eles afastaram seus pés por receio, mas o pinheiro não lhes agredia, apenas tornava o solo desnivelado como se pisassem em um solo com raízes. O apartamento parecia uma casa na árvore, só que muito frio como se todas as janelas estivessem abertas para a tempestade de gelo lá fora. Os prédios vizinhos foram cobertos pela geada. Se não bastassem os ramos no chão, também estava coberto por tapete grosso de folhas secas e quebradiças. Os relâmpagos rasgavam o céu em sintonia com o som o pinheiro vivo arrastando-se como um parasita dominador. Mercedes encontrava-se apalermada analisando tudo a sua volta como se fosse um filme em definição 4d. Pela primeira vez nesse conto Paulo desviou significativamente os olhos de um dos celulares e o deixou cair no chão devido ao susto. Ficou com a boca escancarada.
- Papai, essa é a magia do Natal? – Lídia perguntou com expressões faciais questionadoras, de forma inocente e ao mesmo tempo desconfiando daquela anormalidade.
Paulo saiu da sala às pressas, passou pelo corredor escurecido pelos ramos. Quase tropeçou numa ponta de pinheiro. Gritou. Ele alcançou a porta de saída, que também estava tomada pelo pinheiro. Os outros vieram atrás dele, menos Simon, que havia ido para o quarto e não tinha voltado até agora. Sobre Vanessa, nem sinal dela.
O homem passou a chave eletrônica para abrir a porta e o painel não correspondia. Ele então tentou abrir manualmente e os ramos bloqueavam suas tentativas. Irritado, tentou arranca-los com as próprias mãos, mas nem se mexiam. Paulo apenas ganhara escoriações na ponta dos dedos. Estava vermelho de ira. Sua têmpora saltitava na testa. Chutou a porta. Chutou os ramos. Chutou várias vezes.
- Por que não pedimos ajuda externa? – Mercedes comentou enquanto sacava seu celular do bolso.
- Isso! – Andrea também pegou o dela.
Tentaram ligar para as pessoas que consideravam mais apropriadas. Alice ligou para a polícia. Todas as ligações foram atendidas ao mesmo momento. As três mulheres ouviram um chiado. O som aumentava de volume. Parecia o som de uma corrente de ar. Algo denso. Era como estivessem com headphones e em contato com alguém em meio a nevasca. Os aparelhos apagaram sozinhos, incluindo o Ipad de Lídia.
- M-mas o que? – Mercedes indagou. Não conseguia religar o seu celular.
- Merda! – Paulo gritou.
- Está muito frio. – disse a mãe do homem. – Vamos para a cozinha nos aquecer um pouco. Vou fazer um chocolate quente.
Alice, Andrea e Lídia acompanharam sua avó. Estavam todos tremendo e abraçando-se para amenizar o frio. Tinham vestido casacos fortes, entretanto a temperatura abaixava cada vez mais. Algumas partes da casa já tinham sido tomadas por camadas finas de gelo como se fosse o apartamento uma grande geladeira. Quando Mercedes ligou uma boca do fogão, sentiu o fogo enfraquecido, mas serviu para aquecer suas mãos. Ela sentiu alivio momentâneo. Ela pegou uma caixa de chocolate em pó, amido de milho, uma caixa de leite entre o estado líquido e sólido, o pote de açúcar mascavo, canela e uma caixa de creme de leite.
- Mercedes, podemos pegar o chocolate da máquina na sala de Natal. – Disse Andrea ao se lembrar disso.
- Querida, nesse momento o que menos quero é praticidade, eu tenho 80 anos e estou vivendo uma situação muito louca! Eu quero é me manter ocupada aqui. – Mercedes girou os calcanhares para olhar para as meninas. – Afinal, se nossos celulares, o Ipad da Lídia, o ar-condicionado e provavelmente as televisões da casa não estão funcionando, por que a máquina de bebidas estaria?
Elas continuavam a ouvir os chutes agressivos de Paulo. Certamente a sua adrenalina lhe aquecera bastante. Entretanto sua mãe tinha medo que ele enfartasse. Então, logo após servir o chocolate quente à elas, foi até a porta segurando duas xícaras. Paulo viu que sua mãe estava sorrindo, havia feito com tanto carinho, que ele se acalmou um pouco, pegou a bebida quente e agradeceu.
Alice subiu para o segundo andar. Os ramos do pinheiro acompanhavam-na pelos degraus até o próximo nível. Ela segurava duas xícaras de chocolate quente enquanto repetia para si que não estava maluca dirigindo-se ao quarto do irmão. Abriu a porta sem bater enquanto sussurrava a mesma coisa. Ele estava na cama coberto por uma manta pesada e felpuda. Seus olhos encontravam-se abertos, só que inertes. Eles não procuraram pela irmã que adentrou para deixar uma xícara quente em cima da escrivaninha. Alice saiu indiferente. Seu relógio apitou. Nesse momento houve um ilustre soar de sinos natalinos, acompanhados de Merry Christmas. Eram 22 horas.
Isolado em seu quarto, Simon ouviu Andrea o chamando repetidas vezes. Ele ouvia os passos da mãe se aproximando do seu refúgio particular. Ela entrou.
- Simon?
O filho estava deitado na cama. Utilizava vestes leves e casuais. Havia um lençol branco amarrotado em cima do leito. Sua mãe puxou-lhe pelo braço até que ele ficasse sentado. O interior de sua garganta era exposto por uma grande ferida putrefata. Tinham muitos ratos no chão em meio a feno espalhado. Andrea parecia não os ver.
- Eu não quero desculpas! Está todo mundo te esperando para ceiarmos.
- Que ceia? – O menino perguntou de forma que revelava pela fala e pelas expressões uma clara diminuição cognitiva advinda de leve overdose medicamentosa.
- Pare de ser a ovelha negra dessa família, Simon! Faça-me feliz ao menos hoje! Venha logo! – Ela retrucou rispidamente após encarar os olhos vagos do filho por uns dez segundos. Saiu do quarto batendo a porta.
Um tempo depois, Simon adentrou na sala de Natal. A decoração estava diferente. Não havia anormalidades externas exceto aquelas que acompanhavam o garoto, como as moscas varejeiras, sua forte sensação de ausência de órgãos vitais, a garganta putrefata e os ratos. Simon foi até o papai Noel de um metro e oitenta centímetros que sempre era posto no mesmo lugar em todos os Natais. Ele agarrou o traje que vestia o boneco.
A família retornou para a sala de Natal. Aconchegaram-se com roupas de frio e mantas pesadas. Bebidas quentes, luvas e abafadores. Pela teoria de Alice, talvez isso seja momentâneo. Algum fenômeno que fosse passar após a virada do Natal ou quando o Sol nascesse. Outras residências no mundo senão todas poderiam estar na mesma situação. Todos resolveram esperar lá dentro, tentando reconfortar um ao outro. Andrea carregava seu Whisky dentro do casacão. Já estava um pouco embriagada. Ninguém a julgou diante o que estava passando, até Mercedes e Alice tomaram um shot. Paulo optou por pegar para si uma cachaça Santa Rosa.
No momento em que Andrea ascendeu o cigarro eletrônico, eles ouviram uma canção natalina. Novamente. A lareira elétrica tornara-se um grande tronco de árvore com abertura para o fogo. Ao menos lhes aquecia. A sala parecia uma floresta gélida e escura mesclado com atributos aconchegantes. Um ambiente curioso para se conhecer como um filme de terror infantil ou um terror leve. Simon adentrou na sala natalina. Assim que ele passou pela porta, ela se fechou abruptamente e o pinheiro bloqueou a passagem.
- Será? – Paulo indagou espiando por trás do ombro em direção a porta. – Será que algo nos queria reunidos aqui e agora?
- Gente, essa canção vem de dentro do pinheiro! – Lídia estava próxima da árvore com ou ouvidos inclinados para ela.
- Saia de perto, querida! – Mercedes correu para puxar a neta.
Os semblantes sorridentes dos enfeites de papais Noeis, dos gnomos, das renas e do presépio surtiram sarcasticamente macabro diante a situação. O fogo da lareira aumentou consideravelmente. Restavam 15 minutos para às 00:00.
Todos se sentaram em volta da mesa de centro. Perguntavam-se por que daquilo. O que estava de fato acontecendo. Lídia sugeriu que poderia ser a punição do papai Noel. Ninguém a respondeu, mas sua avó escutou e achou ironicamente cômico.
- Acho que agora o Simon tem motivo pra ficar apático assim. – Andrea comentou quando viu a inexpressividade do filho diante deles.
- Para, mãe! – Alice gritou. – Ele já é esquisito, e você, insuportável!
- Parem já! – Paulo ordenou em voz alta.
Andrea se levantou e lançou a garrafa de Whisky no chão, próximo aos pés de Alice. Ela levou um susto.
- Perturbada! Fala do Simon, mas são os dois doentes mentais dessa família! -Alice contraviu.
Faltavam 3 minutos para às 00:00. Simon estava limpo. Sem feridas, sem ratos lhe acompanhando nem moscas varejeiras. O menino estava pronto. Um frio intensamente forte invadiu a sala natalina, fazendo com que tudo o que fosse leve ser levado pela corrente fria. Os pinheiros começaram a se mexer, sussurrando algo que não se podia entender. O fogo das chamas da lareira aumentou mais ainda. Simon se aproximou dela. Observava da mesma forma que via a bota recheada de Alice queimar no Natal passado. A janela trincou, Andrea e Mercedes perceberam. Era tarde. O vidro explodiu e a nevasca afora adentrou. Todos gritaram. Os sinos soaram forte, anunciando a chegada de Santo Kaos: Uma sombra de três metros que invadiu a casa pela lareira acesa. Em meio a toda a situação, tal entidade não poderia ser bem observada. A ocultação da nevasca lhe acompanhava. Mas Simon estava diante dele e viu aquele ser. Seu corpo era feito de tronco de árvore esbranquiçado. Tinham rachaduras por toda a parte. Pernas semelhantes às de bode. A entidade estava entre o estado sólido e abstrato. Sua longa barba branca oscilava pelo ar, desrespeitando a lógica da gravidade. Comportava-se como um tapete mágico. Seus dedos abertos que acompanhavam os braços envolvendo Simon, eram oscilantes e longos. Fantasmagóricos.
- Kom igjen (norueguês). – Anunciou a entidade em sussurros ancestrais.
- Hivor skal vi? – Simon perguntou a ele.
- Valhöll (Valhala).
Tudo e todos ao redor desapareceram no soar de um sopro descontinuo.
23:46 do dia 24 de dezembro de 2020. Todos haviam terminado de cear. Beberam vinho, degustaram da deliciosa torta de chocolate com damasco que Vanessa trouxera, além de outros doces encomendados por Andrea. Mercedes serviu chocolate quente para todos. Tudo estava impecável. Quando Simon terminou seu chocolate quente, pediu licença e saiu da sala de jantar.
- Filho, vá para a sala natalina, já vai dar meia noite. – Disse Andrea.
Paulo, Mercedes, Lídia, Alice, Andrea e sua amiga, Vanessa, foram para o próximo cômodo esperar a virada da noite. Quando adentraram, sentaram-se nos sofás e poltronas. Lídia voltou a jogar no seu Ipad.
- Pessoal, quando vamos abrir os presentes? – Ela perguntou aflita.
- Calma, filhinha. – Paulo retrucou enquanto mexia no celular.
- Andrea, por que tem um papai Noel nu na sua sala? – Vanessa perguntou a amiga apontando para ele. Simon adentrou correndo na sala de Natal vestido com os trajes de Santa Klaus. Ele vinha acompanhado de uma trilha sonora mental da noite feliz, canção natalina. Avançou para a janela do recinto, abriu-a rapidamente e projetou seu corpo para fora. Ninguém reagiu, todos abalados, atormentados. Simon se jogou de doze andares de apartamentos, quatro níveis de garagem, um playground e portaria. Lídia gritou. Um baque forte.
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