O REINO DE LEARSI
- Victor Coscar
- 29 de jun. de 2019
- 71 min de leitura
Atualizado: 27 de abr. de 2020
Salomão, um poderoso rei de um próspero reino gerou três descendentes: Roboão, Menelik e sua terceira filha, que nascera em 950 A.C. A tal menina era curiosa e muito inteligente. Seus irmãos mais velhos eram os destinados a governar, comandar, reger os próprios caminhos e até mesmo modificar seus destinos. Todavia, para ela, a história não era assim pelo simples fato de ter nascido mulher. A filha de Salomão não aceitou sua sina. Decidiu combater os rótulos que lhe sufocavam e já aos 10 anos lia alfarrábios de ciência em suas mais vastas áreas. Seu pai, o rei, notou que ela tinha enorme aptidão pelo conhecimento, assim como ele. A menina tornara-se um orgulho para Salomão, até que, por vasculhar tantos livros, ela pegou um grande e pesado da coleção especial de seu pai, guardado no baú secreto do aposento do rei. Nele estava escrito "Clavícula".
O rei adentrou em seu aposento e viu o baú dourado destrancado pela chave que deveria estar na corrente de seu pescoço. Sua filha tinha um grande livro aberto no colo. Quando ele viu seus olhos, eles estavam hospedando o mau.
O REINO DE LEARSI
A polícia civil de Florianópolis adentrou em uma sofisticada residência de vidro no bairro de Campeche, numa noite de terça-feira. O chamado veio da senhora Lara devido ao desaparecimento de seu filho de apenas 7 anos. Um fato extremamente misterioso, pois Erick estava em seu quarto jogando “The Kingdom of Learsi” em seu console, enquanto Cláudia Lara esquentava o jantar deixado em três vasilhas de acrílico por sua ajudante doméstica. O senhor Lara retornara recentemente do trabalho, o qual era promotor de justiça na cidade de Florianópolis.
Apesar do desaparecimento de Erick, não havia sinal de arrombamento da porta e nem das janelas. Além disso, a janela do quarto do filho dos Lara era lacrada a partir das 18 horas por motivos de segurança. A polícia civil procurou o menino por todas as dependências da casa, aos arredores da propriedade, no interior dos carros próximos ao local e em residências próximas, enquanto os pais ligavam para todos os conhecidos em que Erick, por algum motivo, poderia estar.
Era quase 03 horas da manhã de quarta-feira. As equipes de busca retornaram para a fachada da residência dos Lara. Seus pais estavam abraçados em frente à porta de mármore, inconsoláveis. Uma agente investigativa da polícia civil, com pesar nos olhos, desviou-se deles e apertou o botão do walk tok.
- Não o encontramos. Seu nome é Erick Lara, 7 anos. Desapareceu no dia 8 de maio de 2007, por volta das 19 horas, sem deixar vestígios. Seus pais são Rodrigo Lara, promotor de justiça, e Cláudia Lara, médica pediatra.
Um clarão dourado invadiu as pálpebras de Erick e penetrou nos globos oculares, incomodando sua inercia e lhe fazendo despertar. Ele se encontrou deitado em um campo verde muito extenso. Suas mãos apoiavam-se na terra áspera por baixo da vegetação. Uma menina de silhueta moderadamente avantajada agarrou a camisa de Erick e o puxou.
- Que estas esperando? Venga deprisa!
- O que você disse? – Erick não entendeu.
Tinham muitas crianças correndo para a parte do campo onde havia muitas árvores grandes. Estavam alucinadas. Outras pessoas como ele ainda encontravam-se deitadas no chão.
- She is coming! – Um menino loiro, aparentemente com 10 anos de idade, corria o máximo que podia.
Muitas daquelas crianças carregavam cestas com frutas que retiraram das árvores, doces e biscoitos que estavam inexplicavelmente no chão, vegetais plantados na terra do campo aberto, garrafas de aço com líquido. As vezes continha água, as vezes suco da fruta, as vezes refrigerante e as vezes bebida alcoólica. De vez em quando as crianças enxergavam suas sobremesas favoritas lhes esperando no chão ou até mesmo suas refeições preferidas.
Erick, enquanto era puxado pela menina espanhola, olhou para trás e viu uma sombra enorme cobrindo o campo ensolarado. Eles já tinham alcançado as árvores. Um som tilintante assombrou a floresta. Várias correntes surgiram do planalto do campo e prenderam nos braços de muitas das crianças que estavam deitadas, adormecidas. Outras que corriam tardiamente também foram capturadas pelas dezenas de correntes. Elas gritavam e choravam desesperadas, pedindo ajuda em seus respectivos idiomas. Mas ninguém podia fazer nada senão correr.
Um rosto de touro metálico, derretido em expressão de grito colérico, surgiu detrás do planalto, acompanhado da sombra ridiculamente enorme. Seu corpo era exageradamente musculoso e vermelho escuro. Era parecido com o corpo de um ser humano, no entanto, era gigante e forte de uma maneira que nenhum homem ou mulher seriam capazes de alcançar tal estrutura muscular. A criatura vestia uma saia de aço escuro que cobria da cintura até a parte posterior aos joelhos. De resto, era coberto por botas escuras tão pesadas que a terra estremecia com cada passo. Do antebraço para as mãos, o monstro tinha uma espécie de prótese de metal e garras afiadas de dragão. Na palma da mão esquerda havia uma cova a qual saiam todas as correntes usadas para capturar as crianças. Ele segurava um bastão com pentes afiados e flexíveis na mão direita. Sua arma media em cerca de quatro metros, e o portador, uns dez metros. Em seu ombro direito, a criatura carregava uma presença muito pequena que, de longe, parecia ser de uma menina vestida de princesa. E por cima dos dois sobrevoava um corvo que crocitava enquanto as correntes arrastavam-se pela terra áspera, retrocedendo para perto do homem-touro gigante. A entidade retornou de onde veio, puxando as correntes próximas aos seus calcanhares, repletas de crianças chorando e sofrendo devido aos seus corpos agredidos pelo atrito agressivo com a terra. Ele caminhava lentamente e de uma forma estranha. Ao mesmo tempo em que parecia estar lento demais, estava rápido. Desconexo com a lógica. – Um mugido estridente e metálico – Desapareceu.
Rebeca, uma menina de cabelo preto ondulado e olhos castanhos, estava andando de mãos dadas com sua tia, no centro da cidade de Marataízes, Espírito Santo. A menina firmou seus pés no chão quando viu, em uma tenda de games, a capa de um jogo que tinha o layout de um castelo enorme e dourado. No portal de entrada do castelo tinha uma menina pequena que vestia um traje nobre. Choviam doces do céu. Rebeca encantou-se com o design e implorou para que sua tia levasse aquele jogo.
- Querida, esse jogo dá no seu aparelho? – Perguntou sua tia.
- Aqui, tia Bárbara! – Rebeca apontou para a logomarca no canto superior esquerdo do jogo. – É o meu console.
Rebeca retornou radiante para casa, ansiosa para jogar “The Kingdom of Learsi”. O jogo iniciou. Rebeca apertou o comando “start” e surgiu o castelo dourado através da tela emitindo uma luz solar artificial que aumentava gradualmente conforme a ponte levadiça descobria os grandes portões. Havia uma menina pálida de cabelos e olhos negros acenando, sua cabeça era levemente inclinada para o lado esquerdo.
- Venha jogar comigo, Rebeca. Vamos nos divertir muito. – Emitiu uma voz feminina de criança da caixa de som da televisão. A alegria da menina era contagiante.
- Vamos!
- É só você me pedir e eu lhe trarei para cá. – Disse a princesa. – Meu nome é Isobel.
- Eu quero jogar com você, Isobel!!! – A existência de Rebeca desapareceu do mundo real ao som de um sopro.
No reino de Learsi, o céu anunciava o anoitecer na entonação azul meia-noite. Na abóbada celestial muitas estrelas brilhavam esplendorosamente, fazendo companhia para a Lua cheia. Tal Lua que era dez vezes maior que a Lua do mundo real.
Rebeca acordou sentindo frio. Estranhou o lugar onde estava. Uma campina verde de horizontes longínquos. Tinham doces no chão, biscoitos, garrafas de aço e um balde de pipoca amanteigada que cheirava forte. A menina se alegrou e correu para apanhar a taça de sorvete de morango com calda de chocolate e confetes. A temperatura gélida do sorvete mesclado com o clima frio fê-la sentir-se desconfortável após já ter comido metade da sobremesa. Rebeca ouvia, bem de longe, um soar calmo de sinos oscilando, cujo o som fora provocado pelo vento. Um cheiro delicioso, quente e amanteigado invadiu suas narinas. Era do balde de pipoca. E tinha uma aparência deliciosa. Rebeca deixou a taça no chão e correu para apanhar o balde. Ao alcançar seu objetivo, ergueu a pipoca e neste ato viu Isobel se aproximando. A princesa era uma menina pálida e cabelos negros ondulados. Usava um vestido branco e vermelho de boneca de porcelana. Sapatilhas ornamentadas por uma pérola cada pé e um diadema de cristal. Havia dois sinos de decoração na pulseira que usava no pulso direito.
- Olá Rebeca, que bom vê-la aqui. – Disse Isobel.
- Como você me trouxe para este lado? – A menina perguntou à princesa enquanto segurava o balde de pipoca amanteigada.
Isobel não lhe respondeu. Encarou Rebeca com uma expressão facial intimidadora. Um corvo se aproximou crocitando, sobrevoando a cabeça das duas, há vinte e poucos metros de distância. Rebeca deu alguns passos para trás.
- O que eu disse de errado?
- Diga para aquelas crianças que elas me pertencem! – Das cordas vocais de Isobel saiu uma voz rouca e grave.
O corvo atacou a mão de Rebeca e ela deixou o balde cair no chão. A menina gritou. Tinha um corte em sua pele. Ela correu para a direção oposta de Isobel, em direção às árvores. O corvo voltou a atacar. Bicou a cabeça da menina e ela tombou no chão. O sangue cedeu à pressão em vários fios, misturando-se aos seus fios de cabelo. Rebeca sentiu uma ardência forte e chorou.
- Levanta! E, vai! – Isobel gritou num tom demoníaco.
Rebeca se ergueu e retornou a correr. Veio o corvo novamente enfiando a ponta do bico em suas costas, arrancando-lhe a epiderme, a derme e atingindo assim a carne viva. A menina sentiu uma dor violentamente aguda e caiu no chão novamente.
- Levante-se!
- Para! Para! Não aguento! – Rebeca bradou.
O corvo fez a curva no céu e retornou a cair para desferir um novo golpe em Rebeca.
- Por favor, para com isso! – a menina chorava muito, soluçando ensanguentada.
A ave crocitou, abriu o bico e, na hora que se aproximou da menina, usou as garras afiadas para pousar e rasgar seu braço. Arrancou um de seus olhos com o bico. As córneas ficaram presas no externo de seu crânio. Rebeca deu meio grito e caiu no chão traumatizada. Estava sem um dos olhos. Pelo olho que ainda lhe sobrara, ela viu Isobel lhe encarando por cima de sua cabeça.
- Vá, junte-se àquelas crianças e morra com elas como parte do gado. – Isobel e o corvo desapareceram.
Rebeca se levantou sem ferimentos aparentes. Estava inteiramente e estranhamente intacta. Seu olho arrancado encontrava-se no lugar, são e salvo. O único dano que a acompanhou foi o psicológico.
- Mas eu senti dor... – Ela indagou perplexa.
Durante grande parte da noite, a garota caminhou por entre as árvores. Estava exausta. As bochechas ardiam de tanto que ela já havia chorado. O frio ressecou suas pálpebras inferiores. Rebeca avistou um arbusto há poucos metros de distância. Ela se acomodou ao lado dele, usando-o para proteger seu corpo durante o frio da noite. Adormeceu rapidamente.
- Hello?
- Bonjour!
- Hallo.
O brilho da luz invadiu sua consciência quando Rebeca estava na camada mais rasa do sono. Ela ouviu aqueles sons. E acordou.
- Aaaah! – Assustou-se. – Quem são vocês?
- Gente, ela é do Brasil! – Disse um menino ruivo. – Oi, meu tome é Tomás.
- Oi Tomás. – Rebeca apoiou as mãos na terra para se levantar. – Onde estamos?
Um garoto de cabelo preto repicado se aproximou da menina. Ele estendeu a mão para ajuda-la a se levantar.
- Oi, eu sou o Erick! Você é de que ano?
- Obrigada. – Rebeca estava de pé. – Tenho onze anos.
- Eu tenho sete. – Ele sorriu. – Mas perguntei em que ano você entrou aqui. Nunca te vi antes.
- Nem eu. – Tomás comentou. – Eu tenho nove anos.
- Eu estava em casa e um jogo de videogame que comprei me puxou para cá. Estou com medo. – Rebeca uniu as mãos, entrelaçando os dedos em demonstração de ansiedade.
- Estamos em que ano? – Uma menina perguntou à Rebeca com sotaque diferente. Ela não era nativa do Brasil, mas certamente teve tempo o suficiente para aprender alguns idiomas.
- Como assim? 2019 é claro.
- Já? – Tomás se surpreendeu.
- Ué, não estou entendendo.
- Deixa eu te explicar melhor. – Erick apoiou sua mão no ombro de Rebeca. – Eu tenho 7 anos, mas fui puxado para o Reino de Learsi no ano de 2007. Então eu tenho 19 anos.
- Como assim? – Rebeca questionou perplexa. Não era para se esperar menos.
- Eu vim para cá quando Learsi ainda era um livro infantil. – Disse Eira, a menina galesa poliglota. – Nasci em 1897.
O rio azul cristal descia pelo desfiladeiro, entre duas montanhas, e desembocava no lago. Nem tão fundo, nem tão raso. E não tinha onde a água dar continuidade ao seu fluxo, entretanto aquele mundo não era real e a lógica não era necessariamente aplicada. Tinham peixes habitando aquele lago. Eram os únicos animais e única espécie de peixe que viviam ali. Devido às espinhas e falta de conhecimento das crianças, algumas infelizmente tiveram mortes agonizantes ao comerem o peixe sem o devido cuidado. Atualmente, na aldeia onde vivem os enviados ao reino, que fica em frente ao lago, existem crianças que sabem ou já aprenderam a preparar os peixes para alimentarem-se adequadamente. Todavia muitas delas ainda necessitam de irem à campina, a espera dos alimentos que Isobel lhes concedia para emboscar as crianças.
Rebeca estava em uma roda entre os novos amigos. Tinha uma manta leve em cima dos ombros para aquecê-la de um clima moderado. Na verdade a manta significava mais, naquela ocasião, um gesto de zelo. Ela bebia uma xícara de chocolate quente que Reyhan uma vez pegou para Richard na campina. Reyhan era uma jovem turca de 14 anos, absorvida pelo Reino de Learsi em 1987. Ela não tinha domínio do português, mas sabia se comunicar o básico com a maioria das crianças de diferentes nacionalidades. Ela se afeiçoou a Richard, um menino inglês de 5 anos que vivia carregando consigo como se fosse um filho. Ele pertencia a este mundo desde 1999, quando sua irmã mais velha inseriu The Kingdom of Learsi em seu dreamcast. Ambos foram enviados para o mundo alternativo de Learsi. Reyhan salvou Richard, mas infelizmente sua irmã fora capturada.
Na roda entre as crianças também estava Erick, Tomás, Eira e Marcus. Marcus também era brasileiro, paulista. Tinha 14 anos e perdeu sua existência no mundo real em 2011. As crianças viviam em grandes casas de madeira, palha e bambus. Eram mais de duzentas casas construídas que abrigavam, espaçosamente, aproximadamente cinquenta crianças em cada uma.
- Você pode dormir com a gente. – Disse Eira a Rebeca. – Vamos adorar. - Obrigada. – Rebeca sorriu de forma forçada. Mas não por antipatia por Eira. Ela gostou muito de todos. Só que não conseguia se animar com o fato de estar presa no Reino de Learsi.
- Gente. Eu conheci a Princesa Isobel. – Disse Rebeca. - O que? - Como? - E ela não te pegou?
Eram muitas perguntas ao mesmo tempo. Rebeca uniu todas elas e respondeu a todos conforme o que ela viveu ontem.
- A princesa me deu as boas vindas quando eu peguei um balde de pipoca amanteigada que estava na campina. Então ela me encarou de um jeito ameaçador e um corvo me atacou várias vezes enquanto ela me obrigava a correr. Eu estava sangrando, ferida, e aquela ave nojenta arrancou um dos meus olhos. Queria morrer porque estava doendo muito. Do nada Isobel desapareceu e eu estava bem.
Eira, Erick e Tomás, que estavam mais próximos, abraçaram Rebeca.
- Agora você está bem! – Reyhan pronunciou com certa dificuldade. - Isobel quer nossas almas, mas não sabemos o seu objetivo. – Eira comentou. – Ela tem esse poder de nos curar se quiser. Afinal, isso é um jogo. É como se estivesse nos dando o “restart”. - Mas acreditamos que ela não pode controlar tudo aqui dentro, porque senão ela já teria nos capturado facilmente. – Erick se levantou da roda enquanto argumentava. Pensativo. - Sim. – Tomás afirmou. - Não sabemos o motivo, mas ela não consegue passar pelo arvoredo. Nem ela e nem o carrasco. - Que carrasco? – Rebeca questionou. Afinal, não chegou a conhecê-lo. - O carrasco é uma criatura híbrida entre homem e touro. – Marcus explicou. – Ele é enorme, usa correntes para capturar as crianças e uma arma de pentes afiados. Aquele mugido estridente e metálico é agonizante! Não queira ouvir. - Reyhan, I want to swim. – O pequeno Richard disse a menina.
A turca se levantou e os dois foram em direção a uma das casas. Tomás, Erick e Marcus também levantaram. Olharam para o céu ensolarado.
- Richard tem razão, é uma boa hora para entrar no lago. - Mas e as roupas de banho? – Rebeca perguntou. - Você pode entrar de roupa mesmo. – Marcus tirou a camisa. Tinha ele o corpo de um menino adolescente. Destacava-se dentre os demais por ter 14 anos. – Estamos presos em um jogo, aqui nem todas as implicações da realidade se aplicam.
Dessa forma, todos foram para o lago se banhar e se divertir. Não somente eles, como muitas outras crianças resolveram interagir com a ideia. Rebeca conheceu novas pessoas e distraiu-se pela primeira vez após vivenciar a aflição de fugir de Isobel. Apenas estava onde estava porque a princesa lhe deixara escapar para uma região a qual o seu poder não podia alcançar.
Próximo a eles tinha um grupo de crianças mais velhas. Na verdade o ideal denominador para aquelas pessoas o termo “jovens adolescentes” de fato. Eira percebeu Rebeca os encarando.
- Aqueles são os nossos “líderes”. – A galesa iniciou. – O garoto de cabelo castanho claro e repicado é Nicolás. Argentino, 14 anos. Ele está aqui há um pouco mais de cinquenta anos. Ao lado dele, o ruivo, chama-se Tory, 14 anos. Vive aqui desde 1809. Ele é descendente da linhagem real escocesa e inglesa. A menina morena ao lado se chama Lira. Ela veio da África do Sul. Tem 15 anos e está aqui há uns trinta anos. A garota oriental ao lado de Lira é a Fayroh. Tailandesa, 15 anos. Está aqui há muito tempo. – Eira riu, pois sentia o quão estranho tudo isso ainda ressoava nos ouvidos de Rebeca. – E por fim, o garoto alto, de 15 anos, cabelo escuro e olhos extremamente azuis, ai..., esse é o Sebastian.
Rebeca percebeu, claramente, que Eira tinha uma queda pelo menino grego. - E ele é o líder dos líderes. – Eira continuou. – Mas Sebastian mudou nesses últimos anos. Ele nos influenciava a não beber bebidas alcoólicas que achássemos na campina. Hoje Sebastian, Tory, Fayroh, Lira e Nicolás bebem todas para se esquecerem de onde estão, pois tanto tempo aqui e nós apenas sobrevivemos à Isobel. Não há luz no fim do túnel.
Já se passaram três semanas desde a chegada de Rebeca. Os alimentos estavam escassos. Sebastian determinou que todos voltassem para a campina para pegar comida, mas aconselhou que pegassem mais os frutos das árvores para se manterem saudáveis e seguros de Isobel. Porém nem ele mesmo seguia seus próprios conselhos. A população de crianças se dividia sempre em cinco grupos. Cada grupo era comandado por um dos líderes. O grupo 1 era de Sebastian. O 2 era de Nicolás. O 3, quem liderava era Fayroh. Tory guiava o 4º grupo e Lira, o 5º. Marcus, Eira, Richard, Tomás, Erick, Reyhan e Rebeca estavam com Fayroh.
Lira era quem tinha o maior domínio das línguas na população e pronunciou, em inglês, por fim: “Infelizmente alguns de nós não retornarão para a aldeia. Saímos em busca de variedade de alimentos. Mas a ida até a campina não é obrigatória, como todos já sabem. Desejo boa sorte a todos nós que estiverem dispostos a arriscarem-se.”
Eira distribuiu algumas cestas. Deu uma para Rebeca e a aconselhou a pegar os frutos das árvores caso ficasse com medo de avançar para a campina. Poucas crianças decidiram ficar na aldeia. Principalmente os mais novos. Afinal, muitos deles senão todos tinham alguém que lhes trariam alimentos diferentes. Os grupos partiram para a floresta. Andaram por aproximadamente trinta minutos em linha reta até avistarem o fim das árvores. Rebeca, assim como os outros, escolheu um tronco para ficar atrás. Eira e Marcus se esconderam junto com ela. - Onde está toda aquela comida? – Rebeca perguntou ao ver a campina verde sem nada. Marcus apontou para cima e uma chuva lenta de alimentos variados caiu do céu, pousando na campina feito pluma. Uma travessa com frango assado de forno e batatas gratinadas estava cheirando deliciosamente bem. Tinham pratos de costela de porco, bacon, ovos mexidos, macarronada, pizzas, milk-shakes, hambúrgueres, arroz, feijão, batata frita, salada, brócolis, filé mignon, sushi, yakissoba, hot-filadélfia, cachorro quente, churros, tortas doces, salgadas e bolos variados, sorvetes, chocolates, trufas, petit gateau, wafers, sucos da fruta, água, água de coco, café, chá, bebidas alcoólicas, refrigerantes, amêndoas, pipoca, peixes, linguiça, calabresa acebolada, dentre muitas outras opções.
As crianças correram para pegar o que queriam. Botavam tudo na cesta. Tinham pessoas desmaiadas, deitadas na campina. Elas eram sacudidas pelos habitantes de Kingdom Of Learsi que utilizavam um pouco de seu tempo caçando alimentos para tentar salvar algumas vidas. Mas até os adormecidos acordarem e entenderem onde eles estavam o chão começava a estremecer com as pegadas do carrasco.
- Run, to the trees! – Sebastian gritou.
Uma menina que tinha a cesta extremamente cheia, correu, tentando equilibrar tudo o que tinha pegado. Não queria abrir mão de nada em sua posse. Então ela avistou um prato de strogonoff e retornou dez passos em diagonal para pegá-lo. O próximo estremecer fez com que a menina desequilibrasse e deixasse alguns dos alimentos caírem no chão. Enraivecida, botou a cesta em cima da campina e catou tudo. Apanhou o prato e retornou de pé para correr, mas uma corrente lhe pegou no braço direito e a puxou. O osso do antebraço fez um “crack” e ela gritou. Todos os alimentos da cesta retornaram para a campina.
- Return to the forest! Now! – Lira proclamou.
Durante a fuga, muitos alimentos caíram das cestas. Os habitantes que retornavam, normalmente eram capturados. A maioria das crianças adormecidas não acordava a tempo de correr. Uma minoria era salva. Rebeca aprendeu rápido. Ela perdeu muita comida durante a fuga, mas sua cesta ainda estava cheia e ela não virou para trás até alcançar as árvores. Eira vinha logo atrás dela. Erick e Tomás pegaram, juntos, a travessa de frango assado.
Isobel estava sentada no ombro do carrasco, o homem-touro gigante. Ele mugiu o rugido estridente e metálico que arranhava os tímpanos daqueles que ouviam seu som colérico. Dezenas de crianças capturadas pelas correntes gritavam de dor e desespero. Algumas sangravam enquanto eram arrastadas pelo carrasco, que se virou e retornou para além da colina. Isobel foi avistada bem de longe pelas crianças, em cima do carrasco, acenando um tchau. Mas não era com sua própria mão. Ela havia arrancado o braço de uma das crianças. E esta criança fora percebida pelas outras, mancando, no meio da campina. Ele não fora capturado propositalmente. Tinha o braço direito mutilado acima do cotovelo, as orelhas e o nariz, além dos dedos de um dos pés. O menino caiu desfigurado na relva, transformando em vermelho a grama verde que lhe serviu de leito de morte. A mandíbula de Isobel escancarou até ficar enorme e a princesa engoliu o braço do garoto e desapareceu junto com o carrasco.
- Deus, me ajuda! – Rebeca indagou com os olhos vagos.
Angelita era uma menina espanhola, nascida em Barcelona. Ela era branca dos olhos bem negros e cabelo liso. Tinha 13 anos. Sofria de ELA (Esclerose Lateral Amiotrófica). Devido à doença degenerativa, Angelita possuía muitas limitações nos movimentos dos braços e do pescoço. Fora isso, nada mais ela conseguia mover. Seu tempo de validade de locomoção estava com os dias contados pelo fato da doença avançar violentamente e não ter obtido respostas tão favoráveis para retardar a ELA. Já havia feito procedimento de traqueostomia e cirurgia de gastrostomia para fixar uma sonda alimentar. Era frequentemente medicada por fortes químicos como o antagonista de glutamato e relaxantes musculares para aliviar o sofrimento.
Angelita estava na sala de estar com uma amiga de infância, Leta. As duas esperavam o jantar que os pais de Angelita preparavam. Sua amiga retirou da mochila um novo jogo que ela adquiriu. As duas se comunicaram apenas com o olhar, loucas para iniciarem The Kingdom Of Learsi. A capa de um castelo dourado banhado por uma chuva de doces era muito aliciadora. Então Leta apanhou o cartucho de dentro da capa e inseriu no console de Angelita. Entregou um controle nas mãos da amiga e deixou o dela em cima do sofá.
- Lita, voy al baño. – Disse Leta.
O castelo dourado surgiu em meio a um clarão dourado. Uma deliciosa chuva de doces caiu do céu enquanto as portas se abriam. Uma menina vestida de princesa saiu de dentro do castelo e veio caminhando até ficar próxima da tela. Isobel acenou para Angelita.
- Hola Angelita, ¿quieres jugar conmigo?
A menina, de tão alegre, tentou se levantar da cadeira de rodas, mas suas pernas não obedeceram ao seu desejo.
- No se preocupe por eso. - Isobel sorriu ao inclinar o rosto para a esquerda.
Leta retornou do banheiro. A televisão estava apagada e o console desligado. A cadeira de rodas de Angelita estava vazia.
- Lita?
Angelita acordou na campina ensolarada. Ao abrir seus olhos negros, contraídos ligeiramente pelos raios ultravioleta, deparou-se com a imagem de uma menina pálida de cabelos negros e compridos olhando para seu corpo repousado. A menina se assustou.
- ¿Quién eres tú?
- Yo Soy Isobel, tu princesa. – Isobel lhe deu a mão para ela se levantar.
- ¿Morí? Ahora puedo caminar? – Angelita perguntou num tom de surpresa mesclado com euforia.
- Estás renacida, Angelita. Te he sanado de todo mal.
Angelita sentiu que sua coluna e ombros obedeciam o chamado de seu sistema nervoso. Ela estendeu sua mão, facilmente, para pegar a mão de Isobel. Levantou-se e girou cinco vezes o corpo, positivamente indignada com os próprios movimentos. Sorria com muita enfuria na face e no olhar cintilante como uma estrela cadente. O orifício em seu pescoço havia desaparecido assim como a sonda alimentar.
- Dame tu mano. Ven conmigo al castillo dorado.
Lita entregou sua mão a Isobel e as duas caminharam para além da campina. Atravessaram toda a mata verde em questão de segundos até a menina visualizar, bem de longe, uma enorme fortaleza dourada no horizonte. E o castelo foi crescendo ilogicamente como se cada passo equivalesse a cem. O portal se abriu. Elas adentraram. Lá dentro era fantasioso. Parte do chão era forrado por carpete fofo, pufes coloridos por todo lado, cortinas monárquicas em cetim amassado. Vasos grandes brilhantes, ornamentados com pedras preciosas. Grandes lareiras flamejantes. Havia serventes trajando uniformes pretos e máscaras brancas que carregavam bandejas com delícias doces, salgadas e bebidas diversas. Os tímpanos de Angelita foram invadidos por uma suave canção de canon in d, de Johann Pachelbel. O som vinha da sala à esquerda, onde havia um piano branco de cauda gigantesco que funcionava aparentemente sozinho. Das teclas pressionadas para produzir as notas musicais, saiam fragmentos cintilantes que lembravam estrelas vistas bem de longe. Elas desapareciam ao encostarem no chão.
- Traje a mi mundo a todos los niños que sufrieron enfermedades crueles en el mundo en que vivían. – Isobel disse a Angelita. - Nunca tendrá que realizar ningún tipo de procedimiento quirúrgico a cambio de retrasar su dolorosa muerte.
- Isobel, ¿eres Dios? – Angelita lhe perguntou com o ar cheio nos pulmões.
- Para ustedes, sí. Yo soy.
A princesa Isobel mencionou alguns nomes, contando a história de algumas crianças, como Tânia, russa, de 13 anos, que sofria de varíola. Michael, 9 anos. Vivia para fazer hemodiálise desde o nascimento. Héris, 9 anos. Sofria de câncer metastático. Antônio, 7 anos. Tinha distrofia muscular de Becker. Joseph, 11 anos. Nasceu portador de diabetes do tipo 1. Sua doença autoimune fora tão impiedosa em seu caso específico que Joseph precisou amputar o pé direito aos 4 anos e os dedos da mão direita e uma parte dela aos 7 anos, restando unicamente o polegar. Quando fez 11 anos, estava internado para a amputação da perna direita.
No cenário em questão, era normal imaginar que todas as crianças absorvidas por The Kingdom os Learsi estavam na aldeia das crianças. Todavia, não havia sobrado nenhuma viva para contar sobre o passado. A princesa Isobel recrutava uma quantidade significativa de crianças e jovens portadores de deficiências graves ou doenças cruéis. Ela lhes dava uma vida incrivelmente normal e prazerosa dentro de seu mundo alternativo. Moravam dentro do castelo e tinham de tudo o que poderiam imaginar, inclusive o que mais almejavam: saúde. Tais crianças eram influenciadas por Isobel, que lhes contava que as outras crianças que viviam do outro lado da campina, eram perfeitas e com a saúde plena no mundo real. E elas queriam destruir este mundo que a princesa criou para amenizar toda a dor que tinha o mundo dos homens. De certo em certo tempo, Isobel criava um exército de seguidores fiéis para invadir o arvoredo e assassinar todas as crianças “más”. A princesa estava perto de ordenar mais um ataque, cujo último fora há um pouco menos de 300 anos. No momento, tinham quatro mil crianças para a invasão noturna de Isobel. Elas usavam armas de aço e fogo para exterminar os inimigos de sua “deusa”.
Angelita fora a última a ser recrutada antes da invasão. Como de costume, Isobel lhe deu um mês de degustação da nova vida até prepara-la psicologicamente para a invasão além da campina. Lutar para defender o estado da saúde plena era uma luta que valia a pena para todos, pois as outras crianças eram uma ameaça eminente que deveriam ser aniquiladas. Sendo noturna a invasão e tendo as armas que elas tinham, a caída dos inimigos era certa. Isobel despertara o máximo do ódio que um coração humano poderia carregar. Suas crianças eram dóceis entre si. Mas psicoticamente coléricas quando se tratavam dos inimigos. Era como fazer a comparação entre a relação humano – humano (entre elas) e humano – barata (entre elas e as crianças da aldeia).
Na última noite antes da marcha das crianças de Isobel para além do arvoredo, a princesa pediu a atenção de todos. Eles deixaram suas guloseimas de lado, os pufes fofinhos, o desenho animado, o escorrega, a piscina de bolas, os brinquedos, dentre outras diversões, para prestar atenção. Isobel mencionou em um idioma desconhecido, mas que ressoava nos tímpanos das crianças conforme a língua mãe: “Eu e meu carrasco não poderemos estar lá na batalha com vocês, mas desejamos toda a sorte possível para, finalmente, convivermos em paz no Reino de Learsi. O mal precisa sucumbir aos nossos pés. Por isso devemos formar a força contrária a ele. Nós somos a aliança!''
Todas as crianças vibraram, levantando as mãos para cima num gesto de vitória.
- E quero pedir algo especial a vocês. – Isobel cruzou os braços. – Existe uma criança que se denomina como "Eira". Ela possui um anel que é meu. Preciso que vocês a matem e peguem o anel. Mas não o tragam para mim. Um grupo ficará na posse do anel no limite da campina e outro grupo virá ao castelo me avisar sobre a conclusão do nosso objetivo. Vamos incendiar suas moradas e perfura-los a carne com nosso aço!
Durante a transmissão do jornal da manhã, o repórter alega que as relíquias sagradas da Basílica Nossa Senhora do Pilar, na cidade de São João del Rei, ainda não foram encontradas pelas autoridades. Os itens eram resguardados no subsolo da igreja, o qual pouquíssimos membros tinham conhecimento sobre a passagem e de sua existência.
Foram extraídos da proteção da Basílica o cibório folheado a ouro, o cálice de ouro contornado por rubis, o crucifixo de prata que contém em seu interior uma fração do sangue de Cristo, o candelabro das chamas sagradas, o ofertório de vidro e o ostensório dourado que suporta o crucifixo.
As relíquias possuem um valor inestimável para a cidade, entretanto, um valor abundante para o mercado, somando todas mais de seiscentos e cinquenta mil reais.
Em uma sala meio bagunçada, no interior de uma casa de esquina no centro de São João del Rei, havia uma mesa de madeira com várias anotações em papeis. Dentre os papeis, tinham panfletos de pessoas desaparecidas. Todos continham o mesmo dia, mês e ano: 9 de janeiro de 2007.
Guilherme Carriço apanhou os panfletos e os pregou no quadro com alfinetes. Ele tinha pesadelos todas as noites devido àquele dia em que estava com os amigos, durante as férias de janeiro, na casa de Rafa, jogando Yu-Gi-Oh com o dono da casa, Paulo, Vitor e Rafael. O último dos meninos citado trouxera para a cidade um console que tinha adquirido de Natal e Paulo inseriu The Kingdom of Learsi para jogarem durante uma pausa do jogo de cartas. Gui retirou-se do meio para pegar um copo de água e presenciou um clarão vindo do cômodo ao lado que absorveu seus amigos para dentro da televisão. Ouviu o som das cartas e do controle caindo no chão. Estava sozinho.
Gui precisou testemunhar diversas vezes para as autoridades locais sobre o desaparecimento de Rafa, Paulo, Vitor e Rafael. Nenhum indício fora encontrado e sua versão da história fora ignorada. Afinal, a única coisa que pôde relatar era que houve um clarão na sala logo antes do desaparecimento de seus amigos, no momento em que eles inseriram The Kingdom of Learsi. O CD do jogo desapareceu.
Durante anos pesquisando o fenômeno, Gui sentia-se certo de algumas afirmações. Ou quase certo. Primeiramente, The Kingdom of Learsi não estava no rol de jogos fabricados por nenhuma empresa produtora de games. Não existiam lojas autorizadas que vendessem tal jogo. Essa informação fora fortalecida devido ao fato de Paulo e Rafael terem comentado que compraram o CD em um camelô. E terceiro, que o CD desapareceu inexplicavelmente logo depois de absorver seus amigos para dentro do jogo. Gui pesquisou sobre desaparecimentos desde aproximadamente o ano de 1970 até hoje, em 2019, e comparou os relatos e finais dos casos em aberto. Dos casos que separou por considerar alguma semelhança, eram todas crianças entre 3 e 15 anos.
No ano de 2015, durante uma feira do Inverno Cultural na cidade de São João del Rei, Guilherme caminhava com sua família entre as barracas de doces, salgados, artesanato, acessórios, brinquedos, eletrônicos dentre outros itens. Seus olhos perambulavam por entre inúmeras coisas até repousarem num baque silencioso em cima da capa de um jogo que tinha um castelo dourado coberto por uma chuva de doces. Seu título era: The Kingdom of Learsi. Gui se aproximou para pegá-lo, suas mãos suavam frio com dificuldade para manter o jogo nas mãos. Não podia acreditar que o encontrara, pois nem a internet tinha informação da existência dele.
- Eu te encontrei!
Atualmente. Gui girou a chave duas vezes e utilizou de todas as trancas para que ninguém de sua família adentrasse na sala. Era uma noite com chuva de granizo e temperatura abaixo dos 12º, atípico para o verão. Todos de sua família estavam deitados e bem confortáveis embaixo dos cobertores. Já passara de meia noite. No móvel de parede atrás da mesa, Gui deixou repousar o cibório preenchido com água, que fatalmente tornou-se água benta. Diferente do cibório, o cálice de rubis tinha sangue. Guilherme pusera o crucifixo dentro do cálice e dele surgiu o sangue de Cristo. Em cima da escrivaninha havia o candelabro aceso com as chamas sagradas. Na mão esquerda, Gui segurava o cabo do ostensório com o crucifixo anexado no ápice. Ele inseriu The Kingdom of Learsi em seu computador. O castelo dourado surgiu em meio a uma luz forte e os doces caíram do céu. O portal se abriu e de lá saiu Isobel, bem de longe. Ela se tornava maior e mais próxima da tela a cada fração de segundo. Sua feição facial não era amigável. Por cima dela, o corvo sobrevoava aos crocitos.
- Você está bem protegido. – Disse Isobel. – Cristo fez homens inteligentes afinal.
- Não vamos prolongar esse assunto. – Gui retrucou. – Você não coordenará o ataque que mencionou antes até que eu ache o seu anel e o retire desse mundo.
- Manterei a minha palavra. E você sairá apenas com os seus amigos. – Isobel abaixou a cabeça ao mesmo tempo em que esticou seus lábios num sorriso maquiavélico. – Os demais são meus.
Gui não respondeu. Ele pegou uma corda enorme que dava contornos pela cadeira e por todo o chão do recinto. Em uma parte média ele escreveu “A DEO PROTECTUS” usando o sangue de Cristo, além de ungir a corda nas extremidades e em outras partes aleatórias. Após o sangue secar, Gui banhou a corda com o líquido do cibório. De forma ilógica, ele amarrou uma das extremidades do cabo do candelabro, que adquiriu uma resistência sagrada para suportar peso em demasia. Isobel desapareceu da tela quando a imagem do castelo se transformou na campina. E então Gui lançou a corda, que foi absorvida pela tela do computador. Ele acabara de criar uma ligação entre o mundo real e o reino de Learsi. Por fim, Guilherme prendeu o cajado na cintura e se preparou para adentrar na tela. Primeiro foram as duas pernas. Ele logo sentiu que não havia chão, então se preparou para agarrar a corda com muita força. Inseriu a outra metade do corpo. Agora estava há trinta e poucos metros de altura, no meio do céu e no pico de uma corda que adentrava em um portal criado por ele. Sentia medo, o cajado vacilava em sua cintura. Iniciou a decida, cautelosamente, segurando firme na corda e usando as coxas para se manter suspenso. Faltando sete metros, uma de suas mãos se desprendeu quando o cajado escapou da cintura e a outra ralou por 3 metros de corda até suas pernas cederem e ele sofrer uma queda de quatro metros em pé.
- Aaaai! – Ele se expressou depois de bater o cóccix na campina e a cabeça no chão. Sua perna direita sofreu uma torção e a palma da mão sangrava.
Gui sabia que não poderia vacilar. A adrenalina por estar onde estava lhe energizou o sangue e ele ergueu metade do corpo caído para observar seu arredor. No alto da campina estava Isobel e o corvo aos crocitos. Ela ergueu uma das mãos e todos os ferimentos de Guilherme foram curados. Ele engatinhou para empunhar o cajado ao seu lado e a princesa já havia sumido.
- Encontre esse anel. Ele está com uma menina cujo nome é Eira. Saia daqui com ele e seus amigos. Você tem doze horas.
Gui andara pela floresta durante quase duas horas. Estava cansado. Perdera a localização da campina e não tinha ideia para onde ficava a aldeia que procurava. Desabou, propositalmente, nas raízes de um tronco de árvore convidativo. Quando ergueu a cabeça para cima, já deitado, avistou várias amoras vermelhas, bem apresentáveis aos seus olhos. Gui usou o cajado para bater no ramo da amoreira, dando inúmeros saltos até conseguir extrair algumas frutas. Pegou sete delas do chão e continuou sua caminhada saboreando aquelas deliciosas e adocicadas degustações.
Alguns minutos depois de se alimentar, ele ouviu o som de água corrente, mas ainda distante. Deveria ser uma cachoeira muito grande para ela se denunciar de tão longe. Guilherme seguiu a pista, mudando de direção imediatamente. Em aproximadamente dez minutos já pôde ver o fim do arvoredo e silhuetas transitando pela planície. Ele correu e correu. Chegou a um campo aberto repleto de casas grandes construídas amadoramente. As crianças olharam para Guilherme e ele fez o mesmo.
- Hello? – Perguntou uma delas. - English? – Ele respondeu com outra pergunta. - Dat hangt er vanaf. – Retrucou outra criança de origem holandesa. - Alguém fala português? – Guilherme sentia-se assustado devido àquela diversidade de línguas que aparentemente tinha ali. E de fato tinha. - Eu falo. – Saiu de trás de outras crianças, uma menina negra de cabelos cacheados. – Meu nome é Amanda e o seu? - Prazer, Guilherme. – Gui viu na face da menina uma aura esperançosa e feliz.
Aquilo lhe cortou o coração, pois o trato com Isobel era apenas salvar seus amigos. Ele não pensava encontrar tantas crianças presas no Reino de Learsi. Seus olhos analisavam a todos a procura de Paulo, Rafael, Vitor e Rafa. Mas não estavam por perto ou estavam bem atrás da multidão que aumentava a cada instante em que ele permanecia inerte naquele local.
- Quantos anos você tem? – Amanda perguntou. - Tenho 21. - O que? – E não foi só Amanda quem se assustou. Guilherme ouviu essa expressão em vários idiomas com entonação de surpresa. – A idade máxima aqui que já vimos é de 15 anos. - Sinceramente, eu não estou entendendo nada! – Guilherme retrucou. - Será que o padrão mudou? – Dessa vez foi um menino quem fez a pergunta a alguns amigos por perto. - Pessoal! – Guilherme assobiou. Todos olharam. – Alguém sabe quem é Eira?
Ninguém respondeu imediatamente. Analisaram o novo participante do reino por vários segundos.
- O que você quer com ela? - Eu preciso perguntar algo muito importante para essa menina. – Guilherme percebeu que agora as crianças desconfiavam dele. Então sacou o cajado preso na cintura e ergueu. Elas se assustaram. – Isso aqui vai manter Isobel longe, eu acho. - Vem comigo, eu te levo até Eira. – Disse Amanda correndo até ele e dando-lhe a mão de forma gentil. – Vamos.
Guilherme seguiu para dentro da aldeia guiado pela menina. A multidão de crianças abriu espaço para ele passar. Eram muitos olhos repousando em sua imagem, percebendo que Gui era novo na aldeia, além do cajado em sua cintura dividir a atenção entre ele e seu portador. Vendo tantos rostos infantis vivendo naquele microinferno, seria muito frio ele fugir com seus amigos e deixar todas aquelas crianças para Isobel.
- Eira está aqui! – Amanda comentou enquanto entrava em uma das casas.
Eles subiram uma escada de bambu que dava acesso ao segundo andar. Gui ficou surpreso com as coisas que as crianças haviam projetado sozinhas.
- Eira? – Amanda lhe chamou. Rebeca, Reyhan e Richard estavam perto dela. - Oi. - Este menino quer falar com você. – Amanda apontou para Gui. – Ele é mais velho. E ele tem um cajado.
Eira riu.
- Mais velho? - A menina se aproximou. – Como você entrou aqui? - Podemos conversar a sós? – Gui olhou para os demais. - Sim. – Eira pediu para ficar sozinha naquele espaço.
Guilherme estava de frente a Eira. Os dois se encararam silenciosamente, mas não de forma agressiva ou suspeita. Havia certa curiosidade de um sobre o outro nos ares.
- Você sabe por que eu estou aqui? – Perguntou Guilherme. - Porque Isobel lhe trouxe, assim como todos nós. - Não foi bem assim. – Gui retirou o cajado preso na cintura e o usou como um apoio. – Eu e Isobel temos um acordo. Vim buscar meus amigos que foram absorvidos há alguns anos para este lugar. Em troca, ela quer um anel que disse estar com você.
A feição de Eira se alterou bruscamente, mas rapidamente retornou ao padrão sereno de sempre.
- Sabe por que estou te contando tudo isso? – Gui indagou.
Eira observou o crucifixo preso no ápice do cajado.
- Obviamente você não confia nela. – A galesa respondeu convicta disso. – Você sabe o que ela é não sabe? - Como assim? - Esse crucifixo. – Eira apontou para o cajado. – E isso adiantou? - Eu imaginei que fosse uma tecnologia avançada, daquelas que existem na área 51, a qual um grupo seleto de pessoas ou alguém tenha utilizado The Kingdom of Learsi para realizar experimentos. – Gui notou que o que acabara de dizer deixou Eira deveras confusa. – Mas eu optei pela versão de Isobel ser um espírito maligno. - Quase. – Eira se sentou no chão e com um gesto, convidou Gui a sentar-se também. – Você já ouviu falar sobre a arte da goétia? - Sinceramente, não. - Eu lhe contarei uma história. – A galesa iniciou. – Havia um rei em tempos antes de Cristo, um rei poderoso em muitos sentidos. Seu nome era Salomão. Ele governava o Reino de Israel. Você já tentou inverter “LEARSI”?
Gui fê-lo rapidamente em sua mente.
- Nossa! – Exclamou. – Reino de Israel. Estamos nele? Eu não entendi a referência. - Não. – Eira sorriu. – O rei Salomão era um homem muito devoto a Deus. Pediu algo que pudesse ajudá-lo a combater os demônios da goétia. O exército de Satanás. Então o arcanjo Miguel lhe concedeu um anel poderoso que pudesse controlar todos os demônios a partir de seus nomes. Salomão capturou todos os 72 demônios da goétia e os aprisionou em seu grimório. A clavícula de Salomão possuía um poder maligno inimaginável, entretanto este mau estava absolutamente sobre o poder do poderoso rei Salomão. Ele manipulou a magia dos demônios em prol da humanidade. Seu reino foi o mais próspero de todos os tempos. Não houve rei mais rico e poderoso que Salomão. Mas um dia ele sucumbiu com toda a sua glória.
- Por quê? – Gui logo imaginou que Isobel tinha a ver com a queda do rei. - Porque Salomão tinha muitas mulheres além da esposa legítima, a filha do Faraó. – Eira deu continuidade ao conto. – E muitas dessas mulheres cultuavam deuses diferentes. Elas inverteram o caminho de Salomão e o próprio rei iniciou adoração a novas entidades, fazendo com que Deus se enfurecesse com ele. O reino de Israel deixou de prosperar, Salomão tornou-se velho e fraco demais. Assim os demônios conseguiram romper o selo do grimório e escaparam. Todos, menos um. Malphas, o príncipe do Inferno. Ele foi o demônio que possuiu a filha do rei e obviamente estava preso em lugar diverso da Clavícula. Salomão não conseguiu separá-los, então aprisionou a própria filha em um antigo papiro egípcio o qual criou a história infantil da princesa Isobel, do Reino de Learsi. Assim sua reputação não seria manchada no fim de seu reinado. Todos os súditos do rei acreditaram que ele morreu ainda poderoso e que sua filha nunca existiu. Arrependido por condenar sua filha àquela prisão, em seu último dia de vida, ele deixou o anel ser absorvido para dentro do papiro para que a princesa pudesse manipular aquele que o manipulava por tanto tempo. O projeto do papiro se desenvolveu para um livro de bolso, depois para uma ilustração infantil colorida e, mais tarde, para um javascript. Malphas usou sua prisão para colecionar almas puras de crianças, com a intenção de provocar Deus. Queria ele negociar as almas por sua liberdade. Todavia, até agora, ele não conseguiu uma audiência sequer. - Mas e quanto ao anel que aprisiona Malphas/Isobel aqui? - Deus não negociará com Isobel. Isso já está óbvio. – Eira virou os olhos. – Então a maior chance de liberdade que Isobel tem seria a remoção do anel deste mundo. Ela não pode chegar perto dele, por isso precisa que você o remova e a liberte. - E onde está o anel de Salomão? – Gui passou os olhos pelos dedos de Eira. - Eu o perdi durante uma fuga da colina, mas Isobel ainda acha que está comigo. - Eira, nós temos que encontra-lo! Eu criei um portal entre Learsi e a realidade.
Podemos usar o anel para afastar Isobel da região enquanto todas as crianças saem do Reino de Learsi! – Guilherme se agitou de uma hora para outra.
- Calma! – Eira colocou a mão em seu ombro. – Nós temos tempo para procura-lo na colina. - Não temos! Isobel tem um exército de crianças, não sei bem explicar sobre elas. Mas essas crianças vão invadir essa aldeia hoje à noite para assassinar todos vocês. Ou encontramos o anel antes, ou muito sangue será derramado nesta noite.
Gui e Eira saíram pelo portal da grande casa de madeira e cipós. Os amigos de Eira e as demais crianças ali perto os encaravam, esperando que dissessem alguma coisa. Os dois não se pronunciaram. Seguiram, calados, para a floresta. Quando Rebeca viu Eira adentrar na selva, ela gritou.
- Espere! Você vai para onde?
- Rebeca, fique com os outros. – Disse Eira. – Eu e este menino precisamos encontrar algo importante na floresta.
- Isso está muito estranho, todo mundo está preocupado. Você não deveriam esconder nada de nós.
- Não quero esconder nada de vocês, mas preciso encontrar primeiro algo que perdi. Depois que encontrar, eu prometo a você que contarei tudo. – Eira deu as costas a Rebeca e continuou seu trajeto para dentro da floresta.
- Eles poderiam nos ajudar a encontrar o anel, sabia? – Gui comentou.
- Eu tenho as minhas razões para não contar a eles que perdi o anel. Afinal, tudo o que lhe contei eles não sabem senão entrariam em desespero.
- Essa realidade já é um desespero! – Gui retrucou-a.
Os dois caminharam por entre macieiras, bananeiras, jabuticabeiras e sabugueiros até enxergarem, há aproximadamente trinta metros, o fim do arvoredo e o início da campina.
- Então, Eira, você acha que já podemos procurar por aqui?
- Não, devo ter perdido mais pra frente.
- Diga-me uma coisa. Se Isobel é um demônio da goétia, ela pode possuir qualquer pessoa, certo? Ou isso é apenas uma lenda popular?
- De fato ela poderia, mas com o anel sob influência, Isobel perdeu muitas de suas habilidades. Podemos comparar a deficiência de Malphas com a de um ser humano que sofre de paralisia cerebral. O demônio perdeu parte considerável de suas atribuições e por isso almeja, a qualquer custo, retirar o anel do Reino de Learsi. Acredito que Isobel não possuiu nenhum de nós porque simplesmente não consegue. Muito menos pode usar do medo, do ódio ou qualquer outro sentimento ruim para se fortalecer. Acredito nisso porque ela nunca alterou
seu poder.
- Então Isobel não está forte! E mesmo assim consegue fazer o que faz com o mínimo de energia que tem!
- Sim, pois Malphas é um dos príncipes do Inferno. Ele tem grande poder mesmo nas condições atuais. Eu creio que ainda há uma forma de possessão para Isobel. Porém deve ser autorizada pelo receptáculo, o qual o demônio não pode mentir para seu receptáculo sobre suas reais intenções. É um contrato sagrado que todos os demônios são obrigados a respeitar as regras estabelecidas. – Eira soltou uma risada abafada pelos lábios fechados. – É difícil para um demônio ser parceiro de um humano, mas é a única forma de possessão completa automática. A possessão habitual, por invasão, pode demorar muito tempo.
- Estou abismado!
- Desculpe-me, mas pelo que?
- Você sabe demais sobre o assunto. – Gui continuou andando mesmo após Eira estagnar os pés no chão e encará-lo.
- Posso ver o seu cetro? Gui olhou para trás e avistou Eira parada, sorrindo e esperando a resposta de sua pergunta. O Sol já havia enfraquecido, mesmo que infimamente. Ele estendeu o braço direito para entregar o cetro a ela. Eira caminhou até Gui e pegou. O examinou com os olhos esbugalhados.
- É lindo! – Ela exclamou. – Serviu contra Isobel?
- Então... eu acho que não. – Gui continuou avançando para fora do arvoredo, que precedia a campina onde se iniciava uma chuva de alimentos.
- O que é isso? Tem comida caindo lentamente do céu! – Ele olhou para cima, abismado.
Crash! Um som rápido. Algo denso. O céu escureceu. Gui sentiu uma dormência absoluta e seu corpo caiu na relva esverdeada. Inerte, desacordado.
No grande salão do primeiro nível do palácio dourado de Isobel, as crianças que habitavam ali estavam com arcos e espadas em mãos. Brincavam golpeando o ar ou atirando flechas nos servos do palácio: criaturas de traje preto, luvas e máscara branca. As máscaras só revelavam os olhos acinzentados. Dimitri acertou uma das flechas na máscara de um dos servos, fazendo-a quebrar. Quando caiu no chão, revelou o rosto cadavérico de uma criança. Era pele e osso. A boca era
uma fenda escura como um grito silencioso. Os olhos pareciam congelados. As crianças se assustaram.
- Sem pânico, minhas crianças! – Disse Isobel, que surgiu da sacada do segundo andar. – Essas eram crianças malignas que queria destruir o meu mundo e assim impossibilitá-los de terem uma vida digna.
- Mas Isobel, você tem muitos servos aqui dentro. Muitos mesmo! – Comentou uma menina que comia um pedaço de torta de maçã servido por um desses servos cadáveres.
- Sim, Jéssica! Eu tento combatê-los diariamente para manter a nossa paz.
Isobel acenou e a máscara se recompôs intacta, no rosto do cadáver animado. Outro aceno, em direção ao grande piano de cauda, e o instrumento iniciou “Waltz of the Flowers”, de Tchaikovsky. Ao som daquela letra pacifica, Isobel desceu os degraus da escada e se uniu às crianças mais próximas. Anabelle, uma menina francêsa, beijos suas mãos diversas vezes. Bahir e Hajime, dois garotos, árabe e japonês, respectivamente, trouxeram flores para Isobel que colheram do campo. Dentre esses agrados, muitos outros vieram para a princesa. Todas aquelas crianças tinham um imenso agradecimento por Isobel tê-los tirado do sofrimento. Ela usava um vestido branco parecido com o de uma noiva. Estava sentada no chão rodeada pelas crianças que lhe agradavam de todas as formas. Seus braços se movimentavam em sintonia com Waltz of the Flowers. Ela construíra um pseudo-paraíso para maquiar o inferno de The Kingdom of Learsi.
O vão entre os troncos das árvores revelava o fim do arvoredo e o início da aldeia em terreno plano. Revelava o lago formado pela corrente de água que nascia em cima da cordilheira. As crianças executavam suas habitualidades locais. Eira contemplava toda aquela visão de seus amigos e conhecidos absorvida por seus olhos. Ela tinha um corte acima da sobrancelha e por isso estava suja de sangue. Ao sair do meio das árvores, as crianças mais próximas a avistaram e correram até a menina galesa, amparando-a e perguntando o que havia acontecido. Eira negou-se a falar até ser levada aos líderes da aldeia: Sebastian, Fayroh, Tory, Lira e Nicolás.
Reyhan e Richard viram sua amiga ser escoltada até a casa maior onde vivia Sebastian. Enquanto seguiam a multidão que se aglomerava curiosamente durante o trajeto, Marcus, Tomás, Erick e Rebeca seguiram o fluxo, mas não conseguiam alcançar Eira com tanta gente em volta dela. A menina adentrou na casa de Sebastian. O belo rapaz, alto, de cabelos extremamente negros, estava sentado num barril de madeira bebendo uma unidade inteira de vodka pura que havia pegado durante uma das chuvas de Isobel. Todavia, não bebia só. Fayroh estava com ele. Eram praticamente namorados. Apesar de estarem sob o efeito do álcool, os dois se assustaram ao ver Eira machucada.
- What happened? – Fayroh perguntou espavorida.
- Isobel? – Sebastian se levantou num pulo desajeitado e desequilibrou-se.
- Onde está o Gui? – Perguntou Amanda, a menina que o levou até Eira.
- Gui? – Fayroh retrucou.
Iniciou-se uma desordem sonora, deixando a atmosfera confusa. Hipóteses sendo lançadas, algumas com base lógica, outras imaginárias, superficiais e ridículas. Sebastian gritou para que todos se calassem, mas desafinou e foi ignorado. Fayroh subiu em cima da mesa e quebrou a garrafa de vodka no chão.
- Silence! – Ela ordenou. – Eira, tell us.
Eira pediu para todas as crianças serem reunidas em frente ao palanque de madeira construído em pilhas enquanto ela trataria do ferimento. Assim sendo, dirigiu-se ao palanque ao lado de Rebeca, Reyhan, Fayroh e Lira. Subiu desacompanhada. Havia muitos olhos mirando em sua imagem.
- (Em inglês) Bem... – Ofegou. Tinha algo ruim a dizer aparentemente. – Eu não sei
como divulgar isso a vocês de maneira não agressiva. Nossa aldeia ao menos era um ambiente de paz. Mas isso acabou. Gui, o menino que apareceu em nossa aldeia é um soldado de Isobel. Ele me golpeou, mas com muita sorte eu consegui golpeá-lo também e escapar. Na madrugada desta noite virão até nós várias crianças parecidas conosco. Elas são controladas pela princesa e têm armas de aço e tochas com fogo. O objetivo delas é nos matar como se fossemos uma praga que deve ser eliminada.
Nesse instante, Gui surgiu em meio às arvores. Ele também estava sangrando e carregava o cajado consigo.
- Eira! – Ele gritou. – Por que fez isso?
- Eu confiei em você! – Amanda bradou em cólera.
Gui percebeu logo que estava em situação muito desfavorável. Viu Eira em cima de um palanque, discursando em prol de si para seus amigos de dias, meses e anos, enquanto ele, um estranho, surgiu da floresta naquele mesmo dia.
- Ela me acertou com o cajado bem na cabeça e eu desmaiei! – Gui disse em sua defesa. - Então nos diga por que é você quem está segurando esse cajado?
- Marcus complicou ainda mais a situação.
- Não! – Gui olhou para o cajado e o sangue em sua mão. De certa forma era plausível eles acharem que ele era o real culpado. – O anel, ela tem um anel que...
- Nós não temos tempo, se agirmos agora, alguns ou até mesmo muitos de nós poderemos sobreviver ao amanhã!
Gui viu Sebastian, Nicolás, Tory e outros garotos trazendo todo o estoque de bebidas alcoólicas que tinham e algumas armas feitas de madeira e pedra até a frente do palanque. As bebidas estavam sendo divididas por toda a multidão de crianças. Tinha um fortíssimo cheiro e alto teor de álcool. Muitas crianças não aguentaram, mas tinham que tentar beber novamente, tampando o nariz e virando alguns copos para aquecer o sangue.
- Isso dará coragem a todos nós, bebam! – Eira exclamou. – Precisamos agir antes deles para criarmos uma chance de voltarmos para casa. Melhor seria a morte lutando pela liberdade que permanecer no Reino de Learsi, ainda mais agora que Isobel preparou nosso fim essa noite!
- Você está louca! Parem de beber isso!
Amanda virou seu terceiro copo de vodka e jogou-o, enfurecida, no chão, encarando Gui com ódio. Obviamente que a bebida ainda não tinha feito efeito, mas
a adrenalina já lhe tomara o controle da mente.
- Amigos! Vamos avançar contra Gui, contra a floresta, contra a chuva de alimentos, contra a campina, contra o carrasco e vamos derrubar Isobel! – Eira gritou imperativamente. – Pois são eles ou seremos nós!
Amanda lançou o primeiro grito de guerra. Sebastian e outros rapazes continuaram. As mulheres se uniram. Todos correram. Gui fugiu para dentro da floresta alucinadamente. Os mais novos, abaixo de 7 anos, e também algumas crianças que não obtiveram coragem para lutar, ficaram no acampamento. Dentre os conhecidos estava Reyhan e Richard. Os dois não dialogaram, pois não sabiam se expressar ou eram capazes de definir o que acabara de acontecer e o que poderia vir a acontecer no futuro. O silêncio era a tortura menos cruel dentre outras opções atuais. Sobraram na aldeia menos de 100 crianças.
Faltavam cinco horas para a invasão. As crianças de Isobel estavam em um estado de transe. Sorriam levemente e mantinham os olhos extremamente abertos. Tinham todas elas feições de maníacos. Os sinos de enfeite no pulso da princesa soaram. Na cabeceira do trono estava o corvo observando o recinto com seus olhos negros ressaltados. Os servos do palácio estavam todos alinhados no jardim de entrada, em cento e oito fileiras de quinze. Seguravam foices, usavam máscaras brancas e, de resto, estavam nus.
Isobel sentiu uma multidão de crianças se aproximando da campina. A chuva de alimentos iniciou ao anoitecer, o que era incomum. A princesa se apressou, deslizando pelo chão do palácio, ignorando as leis do tempo e do espaço. Atingiu o portal em segundos, o corvo levantou voo e um rugido metálico anunciou a invocação do carrasco por Isobel.
As crianças da aldeia alcançaram a campina e continuaram avançando em meio à chuva de alimentos. O solo tremeu com as pegadas do homem touro gigante. O corvo crocitou sobrevoando o céu. Os sinos presos à pulseira de Isobel ressoaram. Ela veio no ombro direito do carrasco. O corvo pousou no outro. A princesa percebeu que eles não tinham vindo aqui pelos alimentos, pois estavam ignorando todos. Ainda mais, enxergou um deles correndo bem mais a frente. Ele segurava um cajado. Isobel saltou do ombro do carrasco para o solo.
- O que está acontecendo? – Ela perguntou a Gui, que se aproximava. – Onde está o meu anel?
- Está com a Eira! – Ele respondeu ofegante ao interromper seus passos quando se
deparou com o enorme carrasco. – Ela armou para mim e agora as crianças querem me matar!
O homem touro gigante soltou as correntes de sua mão e elas caçaram seus alvos. Apesar de estarem sob efeito da adrenalina e a ingestão do álcool contribuiu para que perdessem parte da noção do perigo, ainda eram crianças e humanos vulneráveis. As correntes pegaram aproximadamente cinquenta deles e arrastaram seus corpos, violentamente, pelo solo. Quando uma parte dessas crianças hesitou em avançar, Sebastian e os demais líderes gritaram para que continuassem correndo, juntos, para derrubar o carrasco. Uma das crianças capturada estava para ser engolida pela criatura quando ela lançou a tocha acesa que tinha em mãos para dentro da boca do carrasco. Os demais, presos nas correntes, se levantaram para atacar Isobel que estava próxima aos calcanhares do monstro. O corvo deu um mergulho no ar e arrancou o olho esquerdo junto às córneas de uma menina que ousou avançar contra a princesa usando uma picareta de madeira e pedra. Ela berrou despencando no chão. Rolava na grama de agonia. Isobel olhou novamente para Gui, mas ele já não estava mais parado naquele mesmo lugar. O carrasco pisou nas crianças presas a corrente que tentavam enrolar suas pernas. Pisoteou, chacoalhando os laços das próprias correntes, quebrando seus ossos, decepando os membros e encharcando o campo verde de vermelho sangue. O corvo crocitou, anunciando seu retorno da campina para o palácio. Isobel automaticamente girou os calcanhares e também o fez, abandonando a batalha. As crianças alcançaram o carrasco e continuaram o entrelaço das correntes por entre suas pernas. Eram tantas que ele extasiou e tombou, girando o pulso da mão metálica. Em seu corpo deitado à campina, as crianças subiram usando suas armas, fincando o que podiam nas regiões não metálicas do monstro. Ele soltou um mugido estridente. Chacoalhou o próprio corpo, fazendo os corpos menores lhe invadindo serem lançados para longe. Ao se levantar, apoiou a mão direita no solo, esmagando Fayroh propositalmente. Sebastian gritou seu nome em desespero, e quando pôde ver a situação da sua namorada, ele vomitou.
Outro mugido metálico. Este anunciou que o touro estava de pé e enfurecido. Eram muitas crianças determinadas, mas começaram a crer que não seriam capazes de eliminar o carrasco. Todavia, sem entenderem o motivo, o homem touro gigante perdeu seus músculos, tornando-se osso e pele, cinzas e meras lembranças. Suas partes metálicas oxidaram e desapareceram num instante.
Nicolás tentou acalmar os nervos de Sebastian, que tremia e suava frio. Ele
estava enlouquecendo.
- Conseguimos? É sério isso?
- Não acredito!
- O que aconteceu?
Eira se aproximou dos restos viscerais de Fayroh. Estava apática quanto ao destino da garota e pelo sofrimento de Sebastian. Ela tinha um anel prateado no dedo que não o expunha normalmente. Assim, se aproximou de um corpo mumificado com uma vasta barba branca.
- O que é isso, Eira? – Perguntou Rebeca.
- Meu pai. - Ela sussurrou tão baixo que Rebeca não pôde entender perfeitamente.
- Seu o que? - Então Eira pisou na caixa craniana porosa em decomposição.
O corpo se desintegrou em pó por cima da campina. Eira gritou para todos se erguerem. Ela disse: “Nós sabíamos que não seria fácil! Agora vamos continuar avançando contra Isobel, que recuou por medo!” E seu discurso fez com que as crianças percebessem que de fato haviam feito algo surreal, que nunca imaginariam ser possível. Isso fez com que recuperassem a coragem e a adrenalina voltou a correr em suas veias.
Um baque atmosférico seguido por uma lentidão espacial fez um dos cadáveres do exército dos mortos recuperar toda a sua consciência oculta pelo coma mais profundo do impossível. A criatura se viu nua, empunhando uma foice ensanguentada. Seu corpo era todo pálido e seco, estando a pele e os ossos conectados diretamente sem a interferência de outros tecidos. Aquele ser presenciou a noite ao seu redor sendo iluminada por labaredas incendiando toda a aldeia das crianças. Havia vários corpos estripados no chão, membros decepados e queimados. O exército dos mortos de Isobel tinham destruído tudo e exterminado, provavelmente, todas as crianças que restavam vivas em Learsi.
O ser gritou para o céu noturno lhe ouvir o sofrimento. Recuperou todas as suas lembranças, uma vez deletada e diversas vezes alterada. Gui foi absorvido por The Kingdom of Learsi em 9 de janeiro de 2007, quando estava sozinho por poucos segundos na sala de Rafa, em São João del Rei. Seus amigos nunca estiveram no Reino de Learsi. Lembrara-se de que fora morto pelo carrasco na campina, logo em seu primeiro dia, quando uma das correntes lhe pegara. Isobel devolveu o aspecto de homem vivo para Guilherme e tê-lo “programado” para pegar o anel de Eira, mas a galesa percebeu o toque de Malphas em Guilherme quando ele se aproximou da aldeia aparentando ser uma criança.
Como Gui era tratado como um boneco animado pelas duas, elas utilizaram-no como um depósito de comentários e confissões sigilosas. Agora ele se lembrava de que Isobel estava presa no Reino de Learsi e só poderia sair se Eira lhe permitisse. Por isso atraia e colecionava almas de crianças e jovens para chamar a atenção de Cristo. Em relação a Eira, Gui sabia que ela portava o anel e podia manipular os poderes de Isobel. Mas a galesa era uma menina morta no mundo real e só poderia sair do Reino de Learsi viva se conseguisse convencer Malphas a fazer um acordo de possessão automática, o qual o demônio deveria ser totalmente leal e fiel aos quesitos do contrato, assim como Eira. Obviamente que Isobel se negava a isso, pois assim ela seria uma serva de Eira, apenas uma fonte de poder e principalmente o único meio pelo qual a menina teria para voltar ao mundo real ainda viva. A galesa poderia impedir todos os males do demônio e contê-lo, em prisão perpétua, em The Kingdom of Learsi. Todavia Eira deixava que Isobel/Malphas utilizasse seu poder para fazer o que faz. Se a chance era mínima de o demônio aceitar os termos do contrato, seria impossível se Eira o coibisse de forma tão extensa. Ambos queriam o mesmo objetivo: A liberdade.
A mente de Guilherme tornou-se clara. Todos os anos vividos no mundo real, com sua família e amigos, sua rotina diária, suas pesquisas em busca de seus amigos absorvidos pelo Reino de Learsi, a sensação de ter roubado relíquias poderosas da Igreja, todas essas lembranças eram falsas, introduzidas por Isobel ou, melhor dizendo, Malphas, o príncipe do Inferno.
O cadavérico Guilherme deixou de gritar, optando pela inércia física e aparentemente psíquica. Eira se aproximou dele com um leve sorriso de canto.
- Sabia que eu já te despertei desse transe muitas vezes? – Eira estendeu a mão direita que portava o anel no dedo na frente de Gui, deixando explícito que ela iria conjurar a amnésia dele novamente.
- Sempre que eu faço isso, você grita, fica colérico como se fosse a primeira vez que lhe desperto da "morte".
O rapaz sussurrou alguma coisa que Eira não pôde entender. Ela veio mais para perto, forçando o ouvido para frente. Guilherme saltou num pulo inesperado e golpeou sua mão com a foice, amputando quatro de seus dedos, incluindo o anelar. Eira berrou.
A Caça às Bruxas
Ano 1524. O País de Gales era governado por um conselho especial às ordens de Henrique VIII, da Inglaterra. Homens a serviço do clero invadiram um vilarejo ao Sul de Gales em busca de nove bruxas denunciadas. As dezenas de tochas iluminavam mais uma noite injusta de caça inocente. As mulheres capturadas eram amarradas nas mãos, pés e tinham suas bocas lacradas para que não proferissem feitiços ou maldições. Faltava apenas uma casa, uma humilde moradia ao fim do vilarejo. Catherine se abaixou para falar com sua filha que estava de baixo do leito.
- Eira, você entendeu? – Sua face suava, mas não de calor. Por medo. – Não saia daqui por nada. Eles vão levar a mamãe.
Eira tinha um pequeno livro de bolso que abraçava colado ao peito. Tremia. Bastante assustada.
- Mãe, eles vão te matar!
- Sim, vão.
A multidão chutou a porta e destruíram-na. Catherine empurrou a filha totalmente para baixo do leito e saiu do quarto para se encontrar com seus executores.
- Bruxa! – Gritou a multidão.
- Você foi acusada de praticar bruxaria e atentar contra Cristo! – Disse o Padre, carregando um livro grosso de capa de couro embaixo do braço.
- Eu confesso. Eu confesso que sou curandeira, eu confesso que sou uma mulher estudiosa e independente de um homem, eu confesso que utilizei de práticas místicas para salvar as vidas as quais a medicina não pode socorrer. E confesso que todas as noites eu oro por Deus.
- Tampem os ouvidos!
O padre tirou a tocha das mãos de um dos homens e a usou para queimar as cortinas.
- O que você está fazendo? – Catherine perguntou indignada.
Ela foi golpeada fortemente com uma cruz de ferro que o padre carregava em mãos. Sua testa sangrou muito. A mulher caiu no chão. O homem jogou a tocha no chão da casa de madeira e logo se iniciou uma labareda que se alastrou rapidamente.
- Vamos levar somente as oito. A última serva de Satanás é perigosa demais para receber o julgamento eclesiástico.
Catherine gritou até que o fogo destruísse seus nervos receptores da dor. Eira saiu de baixo do leito, chorando, e presenciou sua mãe queimando. Ela não podia fazer nada. O livro caiu de seu colo e abriu no meio ao chegar ao chão quando o fogo invadiu a bainha de sua camisola. Uma forte luz dourada transcendeu as páginas e puxou Eira para dentro do Reino de Learsi.
O corpo da menina repousava em uma linda campina esverdeada banhada pelo Sol emitindo raios ultravioletas que alcançavam o Reino de Learsi nas cores vermelho, laranja e amarelo. As pálpebras de Eira vibraram devido à claridade. Ela ouviu alguns passos em seu subconsciente e por isso não pôde dar importância a eles. Todavia, sua mão recebeu o toque e o calor de outra. Quando seu braço foi erguido por força externa, a menina despertou e viu a silhueta de uma menina sorrindo para ela. A claridade solar foi se acomodando aos seus olhos até surgir uma face branca de lábios finos, cabelos negros e cumpridos contornando aquele lindo rosto de uma menina.
- Prazer, meu nome é Isobel. – Ela se expressou muito cativante. – E o seu?
- Eira.
Irmãs de Sangue
Eira e Isobel tornaram-se inseparáveis. Uma sabia absolutamente sobre a vida da outra. A galesa contara a amiga que sua mãe, além de curandeira e estudiosa dos astros, utilizava de magia advinda dos demônios em prol da humanidade. Todavia a igreja apossou-se da Clavícula de Salomão para bloquear a magia das bruxas e assim executá-las. Isobel indignou-se, pois seu pai foi considerado o maior mago já conhecido utilizando do poder dos demônios, capacidade concedida por Cristo. As mulheres eram condenadas por fazerem a mesma coisa que glorificara o rei Salomão e o mago Merlin, além de outras entidades históricas famosas, como Nicolau Flamel, dentre tantos homens desconhecidos que nem ao menos foram suspeitos de praticar magia por pertencerem ao gênero masculino.
Isobel contara a Eira que fora aprisionada em Learsi por seu pai, junto com Malphas, seu demônio possessor. O anel que tinha no anelar direito, introduzido por Salomão no Reino de Learsi em seu ultimo dia de vida, fez com que Isobel se libertasse da possessão demoníaca e mudasse o jogo contra Malphas, o príncipe do inferno. Entretanto, Isobel não poderia sair do Reino de Learsi porque já estava morta no mundo real e Malphas estava preso por comando da exilada princesa de Israel. Ambos tentaram acordo durante séculos e nunca atingiram um consenso. Isobel agora pretendia sair daquela prisão junto com Eira, sua melhor amiga e irmã de sangue. Mas precisava convencer Malphas a aceitar a possessão direta, cujo contrato deve ser absolutamente fiel por ambas as partes durante os acordos que construiriam o contrato. Em 1602, Isobel e Malphas se desentenderam gravemente e o príncipe do inferno enviou seu exército de crianças patológicas e de cadáveres para executar todas as crianças do vilarejo. A princesa de Israel deixou que todos fossem mortos, protegendo apenas Eira. Ela pretendia deixar o príncipe do inferno exercer um pouco de seu poder, amenizando sua ira.
Não obstante, de forma não verbal, havia um contrato harmônico entre eles, o qual o Reino de Learsi era o corpo em comum que abrigava Isobel e Malphas. Quando o demônio tinha posse da princesa, preso em Learsi, tal lugar tão belo era um pandemônio. Após a liberdade de Isobel com a introdução do anel em Learsi, ela usou o poder de Malphas para criar um paraíso rico em cores em seu recinto de confinamento. Retornando ao contexto do contrato, Malphas tinha noção de que Isobel, portando o anel, poderia lhe roubar toda a liberdade e seu poder, mas só o fazia parcialmente porque a menina queria mostrar a ele que ambos poderiam coabitar em um mesmo corpo, sendo Isobel a possuidora do domínio até que ela pudesse transferir sua alma para outro corpo semelhante ao seu. Assim dispensaria Malphas de seu duplo confinamento: sob influência de Isobel e aprisionado no Reino de Learsi.
Ano 1603. Isobel e Eira andavam pelo arvoredo, retirando algumas frutas cítricas e pondo-as ao cesto. Os pássaros piavam nas árvores, o Sol cobria a pele e aquecia deliciosamente toda a matéria como se tudo fosse real. O cheiro de terra húmida, o aroma das frutas caídas, o ar fresco tocando na face e raspando nos ombros. As meninas estavam felizes. Eira observou a campina logo a frente e o início da chuva de alimentos.
- Isobel, olha!
- Eu sei, mas os outros ficaram na aldeia. Seria mais prudente virmos todos juntos.
- Mas nós podemos pegar os alimentos mais próximos, coisa pouca. – Eira tinha um sorriso impoluto na face que fez com que Isobel cedesse.
- Tudo bem, vamos lá. – Isobel pôs suas frutas no cesto de Eira e as duas foram com um cesto vazio pegar os alimentos da chuva.
As meninas encheram o recipiente de doces exóticos, alguns que nunca tinham visto cair do céu. Era início do século XVII e estavam em alta na Europa novos sabores suculentos para a burguesia e para a nobreza. Isobel apontou para duas canecas grandes de hidromel. Estava com a boca seca e queria muito beber algo gelado.
- Deixa comigo. – Eira avançou mais quinze metros para pegar as canecas. Ao apossar-se, retornou.
Uma corrente de aço surgiu do topo da colina e escorregou com enorme velocidade até alcançar Eira em questão de segundos. Isobel estava tão
concentrada na caneca gelada de hidromel que não percebeu a presença da corrente sorrateira se aproximando como uma cobra peçonhenta. A ponta afiada da corrente atravessou o pescoço de Eira e os respingos de sangue atingiram a face de Isobel, que estava há um metro de distancia de sua melhor amiga. Ela estava sendo sufocada com o próprio sangue inundando sua garganta e a ferida lhe fazia grunhir feito porco agonizando. Isobel berrou.
Uma criatura sombria de grandes patas de rapina e o corpo coberto por um manto de penas escuras surgiu no alto da campina. Tinha a cabeça de um corvo gigante e olhos vulcânicos. Atrás da entidade apareceu uma besta que era metade homem gigante e metade touro. Tinha placas de metal derretido em sua superfície física. Isobel abriu os braços e levitou. Sua boca escancarou e dela soou algo grave e cortante. Ela alcançou Malphas e seu carrasco em milésimos. O demônio agonizou, sendo exprimido no chão por uma força gravitacional agressiva. Gritou em inúmeras vozes.
- Todos aqueles em que eu executar no Reino de Learsi, suas almas me pertencerão! – Malphas sussurrou sofrível. – Nós contratamos!
- Mas a Eira não! – Isobel aumentou a intensidade do castigo. – Você fez a pessoa que eu mais amo sentir dor!
O corpo de Malphas começou a se abrir ao surgirem centenas de úlceras ardentes que liberavam fluídos escuros e, ao contato com o ar, evaporavam em fumaça.
- O contrato! – Malphas reforçou. – Se você extinguir minha existência, ficará condenada eternamente a este lugar. Se respeitar o contrato, poderá ter Eira novamente assim que atinjamos um consenso para o contrato de nossas liberdades. Sairemos daqui eu, você e sua amiga.
Isobel cessou sua influência sobre Malphas. Ela pensou que se trouxesse Eira de volta com o poder do anel, o príncipe do Inferno se sentiria desmoralizado, mais que já estava afinal. Malphas ficaria desesperançoso para aceitar um acordo com a princesa de Israel. Ela encarou o homem touro e enxergou os ossos de seu pai alojados na composição corporal daquela besta, recinto o qual servia de castigo para Salomão. Isobel retornou ao chão, próxima ao arvoredo. Mantinha grande distância de Malphas e do carrasco que era absolutamente controlado pelo corvo.
- Pode colecionar suas almas a vontade, mas Eira será entregue a mim quando o contrato for realizado.
- Sim! – Malphas confirmou. – Ela apenas servirá para mim como uma forma de garantia de que iremos, os três, conseguir nossa liberdade.
Isobel modificou sua forma física, tornando-se exatamente o reflexo de Eira. O príncipe do Inferno abriu suas enormes asas para voar, mas as perdeu quando seu corpo recolheu inesperadamente. Era ele agora um amontoado de penas que foram caindo no chão, denunciando sua nova aparência.
- O que você fez?
- Eu vou respeitar o nosso contrato. – Isobel, ou Eira, disse ao demônio. – Mas enquanto eu não salvar minha melhor amiga, conviverei sendo seu reflexo para me lembrar dela todas as manhãs, tardes e noites. Enquanto isso, você estará sujeito a se parecer comigo até que saiamos daqui.
- Memento Mori. – Malphas sussurrou.
Isobel desapareceu da campina. Em 827 depois de Cristo, Isobel e Malphas fizeram um pacto. O príncipe do Inferno teria a posse da alma de todos os executados dentro do Reino de Learsi. O contrato foi ratificado pelo anel de Salomão. A princesa de Israel, uma vez de acordo com o pacto, seria obrigada a cumpri-lo. Semelhante seria quando Isobel e Malphas acordassem o contrato da possessão direta, o qual o demônio se apossa automaticamente do corpo humano, com a anuência da própria alma humana, sem precisar passar pelas etapas lentas da possessão indireta ou invasiva, ou, melhor dizendo, a popular possessão demoníaca combatida nos exorcismos. A diferença de uma para a outra era que a direta far-se-ia por pacto o qual o demônio e o humano devem cumprir suas partes do contrato com fidelidade, senão a possessão seria interrompida automaticamente. Por sua vez, a indireta é uma invasão não consentida. Visto isso, o demônio possessor não precisa respeitar pacto bilateral já que não existe.
Salomão, o rei de Israel
Salomão foi o segundo filho de Davi e Betsabá, rainha consorte de Israel. Entretanto, era o quarto filho de seu pai na tradicional linhagem de sucessão ao trono. No período em que o rei Davi estava debilitado, houve uma intensa disputa pelo trono de Israel.
Em seu leito de morte, Davi deu ordens para que Salomão ascendesse ao
trono, seguindo assim os desígnios de Deus. O novo monarca foi coroado aos 18 anos de idade, sendo ungido pelo sumo sacerdote Zadok.
O rei Salomão herdou vastas terras de seu pai para governar, administrou Israel com excelência, criando várias alianças para impedir ataques de inimigos e adquirir melhores rotas comerciais. Era ele o homem mais rico da face da Terra. Além disso, foi também considerado o homem mais sábio. Disse ele que Deus apareceu em seu sonho, perguntando-lhe o que Salomão mais desejava receber. O rei pediu sabedoria para poder governar seu povo.
As alianças com o rei de Israel eram feitas por matrimônio. O monarca possuía aproximadamente 700 esposas. Com Naamah, eles tiveram Roboão. Com a Rainha de Sabá, eles tiveram Menelik.
Não havia homem ou mulher que pudesse se opor ao grande e sábio Salomão. Um homem da paz, um grande líder, somente entidades não humanas provenientes do inimigo de Deus atormentavam o seu reinado. Para isso, o rei pediu algo que pudesse combate-los. Assim desceu o arcanjo Miguel e deu-lhe um anel que podia controlar os demônios.
Um monarca rico e sábio, agora se tornara poderoso não apenas militarmente, mas Salomão manipulara os demônios inferiores para emboscar as entidades mais poderosas e assim aprisionou os 72 demônios da Goétia em um livro, “A Clavícula”. O alfarrábio não apenas serviu como prisão aos demônios como também fonte de um poder mágico colossal e didático para cancelar magias e maldições além de exorcismo. Salomão também instruiu em seu livro sobre a importância do nome da entidade, que seu conhecimento concedia domínio ao possessor do nome sobre o demônio. Domínio esse para expulsá-lo, não para manipular seu poder. Todas as informações o próprio rei Salomão extraiu dos 72 demônios da goétia.
Possuidor de uma inteligência e sabedoria deslumbrante, o monarca de Israel também era um grande filósofo. Ele utilizava um poder maligno para o bem. O bem e o mau parecia algo muito superficial. Em análise, entendia que todo ser tinha bondade e maldade, sendo esses conceitos relativos. O meio externo era um fator determinante de como o ser vai agir perante o mundo. O meio interno era influenciado pelo externo apesar de ter algum poder de determinismo para a construção do ser. No geral o mau era considerado todo aquele que se opunha a ele, mas o próprio rei pensou que ele poderia ser o mau aos olhos de um inimigo.
Poderia ser ele o bem para muitos de seus governados e o mau para outros cidadãos de Israel.
Salomão expandiu então seu estudo particular, imaginando que os demônios eram maus porque obedeciam às ordens de Satanás, o maior opositor de Deus. E para os homens Deus era o bem. Mas seus poderes eram utilizados para o bem nas mãos de Salomão, conforme o entendimento do que era o bem para o rei. “Por que um demônio não pode ser considerado bom? Porque eles odeiam os homens e nós, homens, nos considerados o bem. Logo, nossos opositores são o mau.” Ele indagou.
Os servos do palácio de Salomão já haviam se acomodado nos leitos. Suas esposas encontravam-se reclusas. Ele caminhou pelos grandes corredores até alcançar o subsolo e adentrou em uma câmara secreta, onde guardava lá a Chave Mestra, ou como já citada antes, a Clavícula. O homem de passou sua mão vagarosamente por cima da capa. Tinha o anel posto no dedo. O monarca ordenou aos demônios que eles lhe transmutassem um orbe formado pela essência demoníaca. Seu pedido fora realizado e um pequeno orbe escuro saiu da capa do livro. Salomão sentiu uma forte energia negativa e vozes que sussurravam ideias ruins para que os homens fossem influenciados a grandes malfeitos. Ele violou o túmulo de sua filha natimorta que gerou com a filha do faraó Siamón. O rei sussurrou com os lábios próximos ao orbe para que todos os males lançados pelos demônios fossem anulados, restando somente a magia neutra. Então introduziu o orbe no corpo pútrido em processo de esqueletização. “Surja do inexistente, minha criação” ordenou Salomão. E os tecidos foram se recriando com uma velocidade surpreendente. Músculos, nervos, derme, epiderme, unhas e cabelo. O corpo descolorado ganhou tom bege claro. A criança chorou.
Isobel cresceu crendo que fosse tão humana quanto qualquer outro. Afinal, seu corpo era totalmente humano. Suas lembranças iniciaram-se quando era um bebê e sua existência, alguns minutos antes. Ela não era a filha morta de Salomão com a princesa do Egito, mas outra entidade que ocupara os restos mortais dela. Isobel não tinha ódio da humanidade, pois foi criada pelo rei para ser exatamente uma impecável princesa humana influenciada pelo meio. Dentre suas características pessoais, a menina demonstrou ser muito curiosa por sabedoria e portadora de uma inteligência diferenciada. Ela não era má e em nenhum momento desenvolveu comportamento suspeito. Considerá-la do bem era plausível, todavia, relativo. Isobel
somente era ela mesma. Nunca passara por situações traumáticas, exceto pela cultura tradicional a qual a mulher sempre se posiciona abaixo do homem em qualquer situação. Sabia desde nova que não teria chance de governar Israel mesmo que fosse a mais velha entre os filhos de seu pai. Por ser sábia e inteligente, criticou a supremacia do homem ainda criança. Foi assim que sua mãe “postiça”, a princesa do Egito, adquiriu afinidade por Isobel. Seu jeito atraiu outras poderosas admiradoras, como a Rainha de Sabá.
Bonecas não lhe apeteciam. Gostava de vestidos, mas não tinha predileção para se inteirar do universo feminino. Isobel preferia mergulhar nos alfarrábios da biblioteca do palácio.
A princesa de Israel ouvia sussurros estranhos, mas baixos demais para entender; Todavia, numa noite a qual ela decidiu vasculhar cômodos do palácio nunca explorados pela mesma, os sussurros nunca antes alterados, ficaram mais nítidos. Chamavam por ela por entra as paredes frias dos recintos. Tornavam-se mais vivos a cada momento em que Isobel avançava de ala. Os sussurros focaram uma fração pequena de uma parede feita de pedras retangulares. A menina se aproximou para colocar o ouvido e ouviu uma voz rasteira dizendo: “empurre a pedra”. Obedecendo a voz, uma passagem subterrânea abriu diante seus olhos. Isobel desceu a escadaria íngreme e chegou num salão vazio onde havia um livro grande e escuro em cima de um pedestal envolto por castiçais acesos.
- Agora abra. – Disse a voz rasteira.
Isobel se aproximou. Tinha feição de medo, curiosidade e excitação. Temia aquela voz, mas estava radiante com aquela situação. Pôs sua mão na capa e quando ia abri-la, ouvir alguém descendo os degraus rapidamente, pisando forte no chão.
- Desaproxime-se já da Chave Mestra! – Gritou seu pai, o rei.
Isobel saiu de perto do livro, subiu as escadas e desapareceu do recinto. Não antes de ouvir um coro diabólico de uma legião enfurecida, clamando para que ela abrisse a capa. Parecia que as pareces tinham estremecido e chacoalhado toda aquela colossal estrutura “palastrófica”. Mas como as vozes sussurraram apenas em sua mente, a desestabilização do concreto foi uma alucinação.
Na noite seguinte, em seu quarto, ela voltou a ouvir as vozes lhe chamando. Incomum acontecer ali, pois estava muito longe da sala secreta onde Salomão escondia a Clavícula. A menos que ele tivesse mudado de esconderijo para um local mais próximo. Os sussurros levaram Isobel ao quarto do pai. Ela abriu a porta. O recinto estava vazio. Foi se aproximando do leito. Aquelas vozes vinham de dentro de um grande baú dourado lacrado por uma fechadura pesada. Isobel observou seu pai por uma semana até conseguir espaço para pegar a chave imperceptivelmente. Foi em um dia de banho do rei o qual ele deixou alguns dos acessórios em cima do leito. Quando Salomão retornou, ele encontrou o baú aberto. Isobel estava sentada na cama com a Clavícula aberta em seu colo. Os olhos da princesa hospedavam o mal.
- Mas como? – Salomão indagou mentalmente. – Isobel não é humana, como ela foi possuída!
O rei não sabia que tipo de entidade era a sua filha. O que ele próprio havia criado. Abrigada em um corpo humano decomposto, a existência de Isobel se iniciou com a expressão mágica dos demônios. O ódio na magia demoníaca foi extraído, tornando a menina uma entidade neutra para receber o bem ou o mau conforme sua própria convicção. Como qualquer ser humano, a menina era boa, má e intermediária. Alguém normal que dependia do humor do momento, suas ações recebiam influencia. Nada fora do comum. A teoria do rei tinha dado certo. O bem e o mau eram classificações abstratas, absolutamente relativas e instáveis, mutáveis a qualquer tempo, parcialmente ou integralmente. Demônios eram maus na visão dos homens, mas para eles eram os buscadores da justiça que Satanás acreditava ser merecedor. Em síntese, o vencedor de uma causa decide quem será o bem ou o mau quando for contar a história para a posterioridade. Visto isso, é irrefutável que neste conto não existe o mocinho, a mocinha ou o lado das trevas. Existe o entendimento da situação sobre a perspectiva de cada um.
Salomão brincara de Deus. Criara um ser usando como fonte a magia goétia. Mas como não era Deus, mesmo com todo o seu poder e sabedoria, não era onisciente. O rei não sabia o que fazer.
Todas as tentativas para separar Malphas, o demônio possessor, de Isobel, foram frustradas. Esconder a princesa nos recintos secretos do palácio estava cada vez mais difícil. Alguns meses depois, desgastado mentalmente e desesperançoso, o rei Salomão desceu até a prisão secreta de sua filha e abriu um pergaminho feito de papiro egípcio. Era o mapa de uma região fictícia.
- O que é isso? – Malphas perguntou ao monarca, no corpo de Isobel.
- É a sua nova prisão. – Disse Salomão e seu anel refletiu a luz do Sol que não
chegava até as profundezas do palácio.
Isobel desapareceu. Fora ela absorvida junto com Malphas para dentro do pergaminho. Com o tempo o desenho do mapa alterava-se conforme o demônio modificava a sua “cela” na dimensão a qual estava confinado. Salomão espiava as mudanças geográficas todos os dias.
Cada vez mais velho ele ficava. Sentia-se mais fraco. O rei de Israel começou a cultuar outros deuses pagãos de religiões que suas inúmeras esposas adoravam. Ele se distanciava cada vez mais de Deus, o deus que lhe deu tudo o que tinha. Um dia, sentado em seu trono diante Roboão e Menelik, Salomão sentiu-se mal e estremeceu. Sua longa barba grisalha e ressecada estava caindo. Quase cego de um olho, fisicamente fraco e delirante. Os filhos lhe clamaram temendo que fosse o fim da vida do monarca. Mas ele retornou a si após alguns minutos. Todos os demônios da goétia haviam escapado da Clavícula. Salomão não precisara sair de seu trono para verificar, sentia absolutamente certeza disso. Seu poder praticamente se esgotara.
O pai pediu ajuda para que seus filhos lhe levassem até o quarto para que pudesse se deitar. Roboão e Menelik prontamente o ajudaram até deitar o corpo do rei no leito. Retiraram-se conforme o pedido do homem velho que, quando estava sozinho, abriu o baú dourado e pegou o pergaminho de papiro. O mapa estava totalmente alterado. Malphas criara um novo mundo lá dentro diferente do que fora desenhado por Salomão. O rei retirou seu anel do poder e sussurrou para sua filha.
- Desculpe-me, Isobel, por eu não protege-la. Tanto poder e não consegui salvar a sua vida. Fui um fracasso como seu pai – Chorou. – Mas estou lhe dando este anel para libertá-la de Malphas. Ai dentro você poderá ter seu mundo e governa-lo conforme quiser. Você será poderosa e imortal. Dou a você a chance de ser um deus.
Salomão introduziu o anel dentro do mapa e o objeto foi absorvido por uma luz dourada. Ele pôde acompanhar o item caindo pelo céu escuro e sombrio que Malphas criara. O anel pousou propositalmente no dedo de Isobel. Os olhos demoníacos do príncipe do inferno foram expulsos das órbitas oculares da menina. Outra forte luz dourada puxou Salomão para dentro do mapa. O rei nunca mais foi visto no mundo real.
Irmãs de sangue (PARTE 2)
Isobel estava sentada na beira do lago balançando seus pés na água repleta de crianças brincando. Eira aproximou-se e sentou ao lado da amiga.
- Vamos? – Disse Eira.
- Está gelada! – Isobel respondeu.
- Um, dois, três, e... !
- Já!
As duas pularam juntas, deixando suas vestes em cima da grama para não molhar. Mergulharam de mãos dadas por entre várias pernas e nadaram em direção à cascata de água. Havia peixes naquele lago. Todos pequenos. Isobel apertou o punho e o anel refletiu um som ecoante debaixo d’água. As meninas nesse momento passaram a respirar o oxigênio presente na água. A princesa novamente fez o anel ecoar um som agudo de aço sendo afiado e todos os peixes mudaram de cor. Era maravilhoso o que a menina podia fazer.
A cascata estava logo à frente. Submersas, Eira e Isobel encostaram-se ao limite da lagoa e foi aberta uma passagem que se fechou assim que elas passaram. Emergiram numa pequena porção de água que deu o acesso a uma gruta com estalactites espalhadas no teto. Todas feitas de cristal. Havia um lindo jardim lilás cobrindo todo o chão. Montes de joias e peças de ouro acostadas nas paredes. Frutos em demasia e um aroma de campo aberto.
- Aqui é lindo, não é... – Eira contemplava o oásis secreto que Isobel construíra. Seus olhos cintilavam mais que as joias acostadas. Tinha um sorriso tão verdadeiro que rugia felicidade.
- Eu fiz esse espaço para você. – Isobel acariciou os cabelos loiros e angelicais da melhor amiga. – Eu te amo, Eira. Você é tudo para mim.
Hodiernamente
O cadavérico Guilherme deixou de gritar, optando pela inercia física e aparentemente psíquica. Eira se aproximou dele com um leve sorriso de canto.
- Sabia que eu já te despertei desse transe muitas vezes? – Eira estendeu a mão direita que portava o anel na frente de Gui, deixando explícito que ela iria conjurar sua amnésia novamente.
- Sempre que eu faço isso, você grita, fica colérico como se fosse a primeira vez que lhe desperto da “morte”.
O rapaz sussurrou alguma coisa que Eira não pôde entender. Ela chegou mais perto, inclinando o ouvido para frente. Guilherme saltou num pulo inesperado e golpeou sua mão com a foice que portava, amputando quatro de seus dedos, incluindo o anelar. Eira berrou. A ferida aberta ardia intensamente. Guilherme apressou-se para derrubá-la no chão com um golpe de ombro e apanhou o anel ensanguentado. Colocou-o no dedo.
- É doloroso e muito angustiante passar por isso toda vez. Minha memória sendo apagada, alterada, devolvida e apagada novamente. É sádico. Mas uma vez, quando me lembrei de tudo pela... bem, nem sei que vez foi, eu decidi apresentar ser um alvo indubitavelmente fragilizado, almejando que você baixasse a sua guarda com o decorrer do tempo. Eu incorporei o personagem que você e Malphas concederam a mim. Um fantoche. A sua guarda baixou de tal forma que me possibilitou, hoje, ataca-la para pegar seu anel. Esperei por isso tanto tempo seguindo meu plano, pensando tantas vezes que poderia nunca acontecer. Era como caminhar no escuro, sem saber se eu encontraria uma luz no fim dessa jornada. Contudo... aqui está a minha luz! – Guilherme ergueu a mão portadora do anel e uma forte iluminação acompanhada de um som ecoante com frequências de ondas metálicas fez com que Eira fosse lançada violentamente para o tronco de uma árvore. Seu corpo foi preso e absorvido para dentro do tronco. Somente ficou a cabeça de fora.
O encantamento foi quebrado e Eira retornou a sua real aparência. Isobel.
- Você não é mais uma ameaça. – Gui deu as costas para a princesa. – Vou até Malphas para destruí-lo, lentamente, e acabar com a sua esperança de sair desse lugar. Agora é minha vez de brincar com esse poder.
Lágrimas caíram dos olhos de Isobel e, em seguida, um berro colérico. Parte do tronco se deslocou para cobrir a boca da menina, abafando o seu grito desesperado. O diadema de ouro repousado em sua cabeça caiu no chão. Todas as crianças e os cadáveres animados sucumbiram e desintegraram-se em pó. O incêndio cessou.
Era noite. Havia um céu estrelado como todas as noites em Learsi. Gui alcançou a campina. Além do planalto iniciaram-se as pegadas estrondeantes da besta, metade homem e metade touro. Malphas surgiu em seu ombro na forma de Isobel. O corvo sobrevoava a cabeça da princesa demônio. Os sinos em seu pulso ressoaram. Gui, agora detentor do anel, percebeu que a presença do objeto não causava repulsão ao inimigo. Logo entendeu que Isobel delimitara os passos que Malphas poderia dar em relação à aproximação do anel, assim ela poderia dormir em paz sem que fosse emboscada pelo demônio. Tudo era controlado pela menina.
Um silêncio atmosférico pairou enquanto Malphas e Gui se encaravam. O demônio saltou de cima do ombro do carrasco.
- O que você fez com a Isobel? – Ele perguntou.
Ao invés de respondê-lo, Guilherme correu em direção ao inimigo. O carrasco lançou suas correntes da palma da mão, mas todas foram retalhadas no chão com um simples gesto feito por Gui. Quando ele pisou em um pedaço de corrente, sentiu uma escuridão invadir sua cabeça. Uma escuridão que levou sua mente para longe do reino de Learsi. Ele assistia de cima o passado em Israel. Salomão estava introduzindo o anel dentro do mapa do reino de Learsi, dado por Deus através do arcanjo Miguel. O rei sussurrou algo e em seguida foi absorvido pelo papel. Learsi não era um lugar lindo como hoje em dia. Parecia um pandemônio repleto de dor e desgraça. Ossos espalhados, cheiro de carniça e escuridão total.
Isobel apossou-se do anel e absorveu seu pai para dentro daquela prisão.
Em seguida, apertou bruscamente a mandíbula inferior do homem velho.
- Eu odeio você! – Disse ela com absoluta ausência de inocência nos olhos. - Reconheço que mereço a sua ira. – Salomão respondeu a filha de forma fragilizada, com as feições caídas. Um homem arruinado.
- Irei castigá-los aqui dentro enquanto a prisão durar! – Isobel desintegrou o corpo de seu pai até restarem apenas os ossos. Então o reintegrou em forma de besta humana.
Utilizando a magia do anel, a princesa focalizou Malphas em uma esfera e o lançou para perto de seu pai, em forma de um corvo.
- Os dois estão condenados a caminharem juntos por essa dimensão. Sofrerão o meu poder enquanto aqui for eterno. – Após as palavras de Isobel, um forte clarão dourado igual a luz do Sol cobriu toda a visão do Reino de Learsi, acompanhado do som ecoante de ondas cintilantes que vibraram em todo o espaço geográfico. Gui fechou os olhos e pôs as mãos nos ouvidos. Retornou à realidade.
- Maldito! – Isobel gritou enquanto saia por entre as árvores. Ela estava toda arranhada.
- Que? Como? – Gui indagou. – Você escapou daquilo?
- Oh! – Malphas abriu um sorriso maligno que rasgou a boca de seu Avatar da Isobel. As extremidades labiais sangraram horrendamente. – Eu disse, Memento Mori!
Isobel sentiu tanto ódio ao ver sua imagem demoníaca ameaçá-la que se descontrolou, partindo para cima de Malphas com total ofensividade.
- O que pensa que está fazendo? Você não tem mais magia!
Malphas e o corvo vieram de encontro com Isobel. O demônio tornou-se grande novamente, com garras enormes e afiadas. Cabeça de corvo e uma enorme capa de penas negras envolvendo seu exoesqueleto armado. Então, a partir dele, seu corpo se desintegrou em vários corvos que atacaram Isobel sem dó, arrancando-lhe a carne, os olhos e puxando as córneas. Ela urrou. Nesse tempo, Gui havia corrido para ajudar. Mas o carrasco tentou impedi-lo e fora reduzido a cinzas, deixando apenas os ossos de Salomão a vista. Os ossos sussurraram para ele, queriam lhe dizer alguma coisa. O resto de seu cabelo branco e barba foram levados pelo vento.
- Deixe a batalha de Isobel e Malphas acontecer. – Disse a voz de Salomão.
- Mas a sua filha não tem chance!
- Isobel nunca foi humana. Eu a criei utilizando a magia do anel. Canalizei a expressão de todos os demônios da goétia para provar a minha teoria de que o bem e o mal são elementos relativos. Minha filha nunca foi má por ser um demônio. Ela se tornou fria porque o meio externo lhe tornou assim. Por isso o anel não tem poder contra Isobel e ela pôde usá-lo perfeitamente como se uma humana fosse. Minha filha não vive contra Deus, ela não tem Satanás como seu líder e não possui ódio contra a humanidade. Sua cólera é específica assim como a que existe em cada ser humano. Seu ódio é específico contra Malphas, contra mim, contra a ideologia da supremacia do homem e contra a Igreja na Idade das Trevas que condenou e executou mulheres inocentes ou não de bruxaria, mas que não deveriam ter sido mortas por fazerem o bem a humanidade. Ela absorveu a dor de uma humana a qual amou. Eira.
O corpo de Isobel estava ajoelhado na grama verde coberta pelo seu sangue. Sem os olhos, com as córneas para fora. Feridas enormes pelo corpo que tornavam visíveis a carne viva, tripas e parte dos ossos. Estava entregue a Malphas.
- Então onde está o poder dela? – Gui perguntou indignado por presenciar aquela figura agonizante que se tornara a princesa.
- Memento Mori? – Malphas perguntou sadicamente. Então a atacou e engoliu seu corpo.
O Corvo, o príncipe do Inferno, agora encarou Guilherme como seu mais temido inimigo. Ele ergueu a capa de penas negras que se tornaram duas grandes asas e voou. Gui esticou o braço que estava o anelar que carregava o anel e fez com que o grande corvo tivesse uma queda de aproximadamente vinte metros. Todavia, sentiu um corte profundo e ligeiro. Uns dez corvos saíram de trás dele, sendo que uma das aves carregava seu dedo e o anel no bico. Malphas se levantou.
- Você não pensou que seria capaz de usar esse anel contra mim, pensou? – Disse o demônio desdenhando de Gui. – Isobel era muito inteligente. Ela me bloqueou de inúmeras formas.
Guilherme sentiu uma vibração estranha vinda do interior de Malphas. Olhou para seu dedo decepado ensanguentado. Não conseguia sentir dor. Talvez fosse pela adrenalina. Ele olhou para o Corvo.
- Por que você dizia “Memento Mori” tantas vezes para Isobel?
O príncipe do Inferno soltou uma risada frouxa.
- Porque mesmo sendo detentora do meu poder, eu sou imortal e ela era somente uma humana. E a morte sempre chega para os humanos.
- Mas você é imortal em relação ao tempo. – Disse Gui. – Você pode ser executado.
- E por que isso import... – Malphas teve um vômito espontâneo que liberou uma enorme substancia escura, líquida e gasosa. Estava extremamente quente, causando ulceras na garganta do Corvo. O demônio berrou. A coisa disforme começou a ganhar forma, surgindo uma entidade colossal.
- Eu entendo porque meu pai colocou-me aqui. – Isobel pronunciou enquanto adquiria forma. – O Reino de Learsi não é uma prisão. Não para mim. Aqui é a Utopia do que seria Israel para meu pai, conforme os designíos finais de Deus. Eu vivo e governo o Paraíso.
Uma boca enorme com poderosa arcada dentária rugiu como mil leões. Havia cabelo apenas em um lado da cabeça. Cabelos cumpridos. Uma criatura de aproximadamente quarenta metros surgiu. Asas enormes, garras enormes. Dois chifres taurinos. Os vácuos no corpo da entidade eram preenchidos por chamas negras que também ornamentavam as asas semelhantes à de gárgula e a boca flamejante. Tinha uma corda amarrada no pulso esquerdo com dois sinos de bronze.
- Um demônio? – Malphas indagou. – Nós o criamos. Você tem algo de mim ai dentro!
- Tenho, mas do que isso importa? – Isobel ergueu a mão e produziu fogo sombrio nas penas escuras de Malphas.
- Aaaah! – Ele se exaltou. – Quer saber? Aceito minha derrota. Ser derrotado por um demônio poderoso não é uma ofensa a mim. O fogo se alastrou por todo o seu corpo.
- Você não será morto, será apenas reduzido a e viverá em agonia aqui no meu domínio. Seu poder será utilizado eternamente em prol do meu mundo.
- O que? Mas você é um demônio, nós não vivemos assim! - Eu escolho como eu vivo, eu escolho o que eu sou. – Isobel retrucou os restos do Corvo. – Não ouse escolher por mim.
O príncipe do Inferno, sucumbido ao chão, olhou pela última vez para Isobel. Ele piscou.
- Tá certo. – Malphas tornou-se pó e foi absorvido pela campina.
Um som explosivo emanou da terra para o céu. As almas colecionadas por Malphas durante mais de dois milênios escaparam do palácio dourado. Agora os espíritos navegavam pela abóbada celestial e pelo território de Learsi. Isobel em seu estado demoníaco avistou Eira se aproximando. Depois de tanto tempo... as duas estariam juntas novamente. Entretanto, num salto sorrateiro, um Malphas pútrido como uma ave em decomposição, escapou do sepultamento e abriu suas enormes asas esburacadas. Investiu diretamente contra a alma de Eira. Atemorizado, o espírito da menina se desaproximou de Isobel para tentar escapar do grande corvo.
A princesa de Israel puxou de dentro das costas um grande chicote de ossos retirado da sua coluna vertebral, que regenerou instantaneamente em estalos agressivos. O chicote de ossos pegou fogo de chamas negras. Isobel o fez caçar Malphas, esticando a arma sem limites até envolver o pescoço do príncipe do Inferno e o lançar no chão com violência, subjugando-o.
- Por favor. – Disse o fragmento mínimo do que restava de Salomão para Guilherme. – Me dê aquele anel.
- O que o senhor quer fazer? – Disse Gui espremendo o punho devido a dor que sentia pelo dedo decepado. Tinha muito sangue nas mãos.
- Me dê. – O espírito do rei implorou. Estava fraco, quase desaparecendo.
Guilherme pegou o anel e colocou-o no dedo espiritual que Salomão indicou. Uma forte luz pairou sobre ele.
- Todos os demônios deverão se retirar da Terra dos homens quando estes souberem seus verdadeiros nomes. – Decretou Salomão. – E os demônios jamais poderão mentir seus verdadeiros nomes quando estes lhe forem perguntados!
E então o poderoso anel de Salomão fragmentou-se e estilhaçou em incontáveis e minúsculos pedaços.
- O que?! – Guilherme ficou indignado. – Por que fez isso?
- Aquele anel não deve mais ser utilizado. Seu poder é imensurável, e para ser utilizado, seu possessor humano deve dar em troca o que tem de mais valioso. Eu abri mão da proteção de Deus por este poder. – O espírito de Salomão foi levado pelo vento, desaparecendo da existência completamente.
Isobel queimou o restante da energia de Malphas até as chamas negras consumirem-no totalmente.
- Memento Mori. –Disse ela.
Malphas fora destruído. Morreu. Deixou de existir. Um borralho aquecido cobriu a parte do gramado que demarcara o local onde o grande Corvo fora dizimado.
Eira voou em direção a Isobel e abraçou sua grande face demoníaca. Toda aquela estrutura colossal desmontou, dando lugar para o corpo intacto da princesa de Israel.
- Eu senti tanto a sua falta! – Disse Eira, chorando.
- Eu também senti a sua. – Isobel apertou-a em seus braços.
- Só relembrando aqui que você poderia tirar ela da prisão no palácio dourado desde
o início! – Gui comentou. Seu dedo retornou ao normal enquanto Salomão conjurava seus últimos feitiços.
- Poderia, mas eu pensei que fosse humana. – Isobel retrucou. – Tinha que agradar Malphas mesmo que parcialmente para eu e Eira termos alguma chance de retornarmos, vivas, ao mundo dos homens.
- Isobel, não precisa se explicar para mim. – Eira lhe disse em gesto meigo.
- Ei! – Gui se aproximou das meninas. – E agora? O que eu faço?
- Se quer saber se eu posso lhe devolver a vida? – Isobel comentou cinicamente. – Nem se eu fizesse questão! Eu posso deixar você e todos esses espíritos saírem do reino de Learsi, mas já estão todos mortos! Finais felizes são apenas para contos infantis. Ou para mim, que controlo o meu próprio destino. Desfrutarei dessa eternidade aqui com a Eira, em meu paraíso. – Isobel respondeu olhando para aquela que mais amava. Na verdade, única coisa que amava. Tinha um sorriso largo e os lábios estavam umedecidos.
- Mas Isobel, e a minha mãe? As pessoas que eu convivi em vida.
A expressão facial da princesa modificou.
- Eu não sou o suficiente para a nossa eternidade?
Gui deu as costas para as meninas. Caminhou em direção às árvores. Os espíritos sobrevoavam na mesma direção em que ele seguia. O menino soltou uma risada monossilábica. Debochada.
- Em seu próprio paraíso e você só pode controlar a si própria, mas não a vontade dos outros. Afinal, finais felizes são apenas para contos infantis.
Gui desmaterializou-se para se unir aos milhares de espíritos que vagavam por Learsi.
Isobel colocou suas mãos na cabeça de Eira e enxergou o que ela almejava como paraíso. Viu uma fogueira enorme. Uma labareda viva em chamas escaldantes queimando toda a palha agrupada para este fim. O céu noturno estrelado era palco das galesas dançando em torno da fogueira e em torno de si próprias. A mãe de Eira, Catherine, estava lá. As bruxas cantarolavam em galês uma cantiga mágica anciã. As andorinhas piavam. A Lua Cheia estava enorme no céu ao lado das estrelas. Elas podiam ouvir toda a fauna animal, a terra, as árvores, os astros e a água. Era uma sensação incrível.
- O céu em você... eu reconheci. – Isobel abriu uma fenda na abóbada celestial. O
Reino de Learsi não seria mais denominado assim. A princesa
compreendeu que a utopia de que Deus almejava para o reino de seu pai era o paraíso o qual Salomão projetava. Learsi seria qualquer coisa que cada um quisesse que fosse. E todos os espíritos poderiam transitar por lá livremente. Não havia doenças, não havia discriminação, não existiam seres melhores ou piores. O que era mundano permanecia lá no mundo dos vivos, praticado apenas pelos hospedeiros da carne em objetivo de desenvolvimento mental e espiritual.
Finais felizes não existem se criamos os nossos em dependência dos outros, pois cada um almeja particularmente o seu.
Pergunto-me agora se um Final é apenas um ponto final em que pode ser procedido por uma continuação na mesma linha ou um ponto parágrafo. Ou até mesmo por outro conto que reinicia aquele final. É incrível a capacidade de reinvenção, a liberdade da criação, a constante mutação.
EPÍLOGO
Século VI D.C. Um senhor excepcional caminhava pelo alto de uma colina ensolarada, segurando uma grande espada afiada, forjada nas terras de Avalon, por ferro espacial encontrado nas estrelas da Via-Láctea. Tinha a empunhadura prateada ofuscante. Apesar da idade avançada, da barba cumprida e volumosa esbranquiçada, corpo levemente curvado, ele parecia gozar de boa saúde. O ancião possuía anéis nos dedos, trajava um manto azul marinho com ilustrações mínimas que insinuavam estrelas vistas de longe. Em sua cabeça, repousava um grande chapéu pontiagudo da mesma cor e detalhes de seu traje.
Outra menção e, de certo o mais instigante, até mesmo que a esplendorosa espada que portava, era o fato dele caminhar com uma corrente presa em seu punho esquerdo. A corrente flutuava em direção acima do seu chapéu como se fosse a coleira de um animal aéreo de estimação. Parecia ser um enorme animal, pois todo o campo estava ensolarado, exceto o homem como ponto central coberto por uma sombra distorcida num raio de 40 metros.
- Pronto! – Disse o velho. – Aqui está a bigorna.
O ancião fincou a espada na pedra, emitindo uma forte luz eruptiva na circunscrição daquela rocha, da espada e até o céu.
- Quem retirar essa espada – Arthur! – Insinuou propositalmente. – Governará toda a Bretanha.
- Não era mais fácil entregar logo a ele? – Perguntou a criatura presa à corrente do ancião. Ele possuía uma voz fleumática. O sonoro estava entre o gênero masculino e feminino.
- Eu tenho os meus motivos, Egyn. – Quero que a ascensão de Arthur pareça legítima.
- Está bem, Merlin.
A entidade ligada ao ancião pela corrente tomava a forma de uma besta anômala: Tinha o corpo de um mamute, grandes presas de marfim encurvadas, com aproximadamente 10 metros em cada lado. Apesar de ter aparência de um mamífero, o corpo não era mole. Possuía rígida armadura de exoesqueleto.
As patas dianteiras e traseiras não eram de mamute, pois tinham grandes músculos delineados e cobertos com couro até as extremidades das garras de dragão. O rabo também era incomum, assemelhando-se ao de um crocodilo colossal.
Este era Egyn, um dos quatro Reis do Inferno. Comandante de uma poderosa legião de demônios. Tornou-se mais forte quando tomou para si grande parte da legião de demônios de Malphas, quando ele, um dos príncipes do inferno, fora aprisionado no Reino de Learsi.
Nessa época, século VI depois de Cristo, Egyn estava submetido ao prestigiado mago Merlin.
“Serei um eterno sábio ignorante se eu tiver apenas o conhecimento do que eu sei e percebo do mundo, sem saber se outros também veem algo parecido. Mas ninguém compartilha esse tipo de pensamento tão oculto em uma caixinha trancafiada dentro do nosso universo mental. Ou eu sou mesmo um sábio ou o egocentrismo me manipulou a presumir que sou o único no mundo ou um dos poucos a pensar como eu penso”.
- Pensando alto de novo? – Perguntou Egyn de modo sarcástico. – E sempre a mesma coisa.
- Pare de invadir a minha mente, demônio. – O mago retrucou de forma desinteressada. Para ele ler ou não, tanto faz.
- Você é um oclumente excepcional, deveria manter seus segredos guardados.
- Mantenho guardados os segredos que eu não anseio compartilhar. – Merlin abriu a palma da mão direita e fez se materializar um cajado de fibra de dragão.
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