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O Espelho de Zediva

  • Foto do escritor: Victor Coscar
    Victor Coscar
  • 20 de fev. de 2019
  • 37 min de leitura

Atualizado: 5 de nov. de 2020

EDGAR BRUNME JR 1879 Suas ambições podem se tornar realidade, mas fuja dos reflexos a partir desse momento.

PRIMEIRO FRAGMENTO

Seis de outubro de 1879. O baile anual dos aristocratas no pequeno Condado de Vyndegard estava próximo de acontecer. O anfitrião deste ano era o sucessor de Edgar Brunme, seu primogênito, Edgar Brunme Junior. Ou, como também era conhecido, O Conde de Vyndegard ou “O Ogro Trajado” para todos aqueles que zombavam de sua feiura.

Ed Junior possuía exatamente um metro e sessenta e quatro de altura. Aos 22 anos, provavelmente não cresceria mais. Ele não tinha muitos pelos e sua barba era malfeita, escassa e desgrenhada. O cabelo era duro e mantido curto para que não causasse maiores danos ao seu visual precário e naturalmente decadente, ornamentado pela riqueza que "plastificava" Edgar. O jovem aristocrata desenvolveu ansiedade, insegurança social e descontava toda sua frustração na comida. Aos quinze anos já sofria de obesidade, tinha a pele extremamente oleosa, perebas pelo rosto, suor excessivo e uma higiene horripilante.

Os únicos atributos que lhe salvavam eram sua fortuna e título herdado do falecido pai, pois, minimamente, Edgar não era nem simpático e nem humilde. Reservado, para se manter protegido, ou ao menos ter tal sensação. Uma grande ilusão. Três pretendentes recusaram o casamento arranjado com o Conde de Vyndegard. Elas prefeririam se casar com um plebeu, um velho moribundo e um escravo, que passar a vida ao lado de um homem como ele, disseram as damas, respectivamente.

Uma semana antes do grande baile, a tia de Edgar faleceu repentinamente e de forma suspeita. Ela fora encontrada com a epiderme roxeada, desfalecida em seu aposento, pelos empregados da Mansão Rikster. Sua fortuna e propriedades foram transmitidos aos filhos. Entretanto um único bem fora enviado exclusivamente para Edgar Brunme. Um grande espelho de chão de cor bronze. Ele era extremamente pesado e, sua borda, ornamentada por tentáculos afiados. O bem fora deixado na propriedade dos Brunme e ganhou espaço na galeria de arte da família. Ed não tinha motivos para admirar seu reflexo no espelho, mas possuía afeição por sua tia que lhe levantava a autoestima e o considerava bonito, mesmo que fosse por dentro. Por conhecê-la bem, ele recebeu o presente como uma mensagem de intenção positiva que poderiam ter inúmeros significados os quais deveria extraí-los sozinho. A tia Maria, como ele a chamava, faleceu no auge de sua vida. Após a viuvez, ela ficou mais jovem e bela. Atraíra muitos pretendentes devido ao rejuvenescimento milagroso e secreto o qual a mulher levou a fórmula consigo para o túmulo. Pela forma de seu perecimento, o médico da família constatou um ataque cardíaco fulminante aos 58 anos após realizar tantos exames técnicos hipotéticos que não lhe elucidaram com total certeza a causa da morte.

Aos passos pesados e truculentos, desajeitado, Ed empurrou as portas da galeria e se aproximou do espelho. Fazia uma expressão emburrada enquanto encarava seu reflexo. O fraque grafite que usara estava tão justo em seu corpo arredondado que ameaçava romper a qualquer momento. Os empregados por trás de suas costas, que retiravam toda a poeira do recinto, uniram as mãos e abaixaram a cabeça em respeito à presença do Conde de Vyndegard. Os olhos de Ed notaram o espelho embaçando quando ele decidiu encarar o objeto. Ele se sentiu afrontado pelo destino que também resolvera zombar de sua aparência por se negar a refleti-lo para si. As artérias de sua testa pulsaram e ele começou a suar frio em meio a um clima gélido da cidade. Aquilo não era normal. À vista disso, surgiu "Saudações" em escrito no vidro embaçado.

Ed levou seu rosto mais próximo ao espelho para ler a expressão mais de uma vez. O objeto lhe cumprimentara. Era isso mesmo? Indagou. Num instante a sentença desapareceu e o espelho voltou ao normal, refletindo a aparência degradante daquele jovem homem nobre. Por ver a si mesmo, ele se esqueceu repentinamente o fato subliminar a fim de auto-observar-se.

- Eu sou Edgar Brunme! – Disse a si. – Eu sou seu anfitrião esta noite.

Ele treinou algumas frases em frente ao espelho e gestos comportamentais, alinhando a coluna arqueada. De repente outra frase surgiu no espelho que mais uma vez embaçou à sua vista, cumprimentando-o diretamente: “Olá, Edgar Brunme”. Ed piscou os olhos diversas vezes. Pensou que poderia estar alucinando. Não tinha tocado ainda em seu whisky naquele dia, só lhe faltava desenvolver algum distúrbio mental grave para concluir sua ruína. Todavia, como o próprio pensou nessa hipótese, ele a desconsiderou, pois doentes mentais têm dificuldade para perceberem e aceitarem seus problemas.

- Eu sou o Espelho de Zediva. – As mensagens se apagavam e surgiam novas sentenças no lugar das anteriores.

Ed olhou por trás do ombro direito e viu seus empregados na mesma posição, encarando o piso de mármore travertino da galeria. Para não acharem que ele estava enlouquecendo, decidiu não responder o objeto naquele momento.

- Vocês! – Disse Ed, imperativo. – Cubram o espelho com um lenço e levem-no para o meu aposento.

Como ordenado, o espelho fora carregado por quatro homens e duas mulheres e posto na parede ao lado da lareira. O conde adentrou em seu quarto e mandou que todos se retirassem. Sozinho, ele descobriu o espelho. Já não estava mais embaçado. Colocou as mãos em dois tentáculos afiados e forçou o espelho a se manifestar. Sussurrando, é claro, para que ninguém presente naquela mansão criasse expectativa de sua falta de sanidade mental. O espelho embaçou novamente.

- Isso! Isso! – Festejou.

O céu parecia mais escuro. As abas das janelas abriram sozinhas e as cortinas ventaram. Uma corrente fria invadiu o aposento. Edgar estava com os olhos esbugalhados e vermelhos, com as mãos nos tentáculos do espelho, encarando-o como se fosse um diamante cintilante à sua frente.

- Vejo que você possui avidez por uma aparência física digna de Edgar Brunme, o Conde de Vyndegard. – Disse o espelho. – Eu posso lhe ajudar a cobrir as vulnerabilidades em sua vida.

- Sim, eu quero! – Ed sussurrou para o espelho. Era como se um dedo fantasma escrevesse no vidro e o ruído acompanhava as letras se formando. - Antes de começar a me usar, você deve escolher meu próximo usuário. Você é meu novo possuidor, contudo eu preciso de um sucessor da posse. - Mas eu serei seu eterno possuidor! – Edgar se enfureceu. Suas bochechas gordas avermelharam-se além do tipicamente normal. - Eu não posso me arriscar a ficar sozinho. – Respondeu o espelho. – Já esperei por dezenas de anos por um possuidor, esquecido embaixo de um sótão polvoroso. - Tudo bem! Eu vou escolher alguém, mas você será eternamente meu! - Seremos um do outro. – O espelho de Zediva reformulou. – Agora escreva o nome do herdeiro em mim.

Edgar levou seu indicador direito até o vidro álgido e escreveu “Sofia de Bardanhain”.

- Você a ama. – O espelho proclamou serenamente após o nome ter sido escrito. – Mas esse amor não é recíproco.

Edgar espremeu os dedos das mãos suadas e soltou um brado descontrolado. Respingos de saliva escaparam por entre seus lábios grossos escancarados. Seu urro pôde ser ouvido por grande área do segundo andar e próximo à escada que levava ao nível inferior.

- Peça-me. – O espelhou escreveu. – Você poderá ter o seu desejo realizado em troca de metade da sua expectativa de vida restante. - O que? – Edgar refletiu. – Você acha que eu reduziria a minha vida para ficar bonito para uma mulher? - Posso lhe tornar um homem muito atraente. Você não será belo para uma mulher, você será belo para o mundo. Escolha: Uma vida longa e sofrida ou uma vida reduzida e feliz?

Edgar pensou em silêncio. Cochichou consigo mesmo, levando a ponta dos dedos próxima aos lábios. Soltou uma risada pensativa.

- Eu quero ser o homem mais belo do mundo. – Ed anunciou em frente ao Espelho de Zediva. - A beleza pode ser relativa. – Respondeu o espelho. - Mas lhe farei belo para Sophia de Bardanhain e para a humanidade.

- Sim! Isso! Faça!!!

Todos os órgãos da mansão iniciaram a trigésima segunda sinfonia de Joseph Haydn. O som estava ensurdecedor e invadiu totalmente os cômodos da propriedade Brunme.

- Ninguém lhe ouvirá gritar.

Antes que Edgar pudesse se pronunciar, ele sentiu uma alucinante dor nos ossos e despencou de joelhos no chão. Seu esqueleto começou a quebrar, criando pontas que rasgaram a pele e causaram fraturas expostas. Ele urrou de costas no chão. As fibras dos músculos de seu corpo romperam, sua visão escureceu e retornou vagarosamente. Uma fortíssima dor de cabeça e náuseas lhe atingiu maldosamente. O conde vomitou tanto que seu esôfago atrofiou e o homem escorregou na poça horrenda dos fluídos que expeliu pela garganta. O tecido de seu traje rompeu. Edgar agora sentiu uma diarreia desenfreada se aproximando e não pôde impedi-la. Estava um fiasco. O espelho lhe traíra. Matara sua tia Maria e agora iria lhe assassinar de uma forma tão cruel e humilhante que os vivos diriam "morreu da mesma forma que viveu" ou algo semelhante. Ed observou seu reflexo no próprio vômito, com os braços por cima da poça. Seu rosto deformara. Os ossos de seu braço romperam em mais de três partes cada. Ele caiu novamente no vômito e desmaiou ao som da sinfonia de Joseph Haydn, que cobriu todo o rastro de seu berro antes que perdesse as forças das cordas vocais.

Flaureta, a governanta da Mansão Brunme, mandou cada funcionário para um lado, a fim de botar trancas nos órgãos e encerrar aquele fenômeno sobrenatural que invadira o recinto integralmente. Quando ela chegou à porta do aposento de seu patrão, todos os órgãos já tinham parado de tocar. Ela encostou a mão na maçaneta e, mesmo usando luvas grossas, sentiu o metal bem mais frio que a temperatura local poderia torna-lo. De alguma maneira os sentimentos positivos que Flaureta poderia carregar em seu cerne vazaram do coração. No lugar deles, sentiu um obscuro maligno lhe fazendo recordar de tudo o que não gostava nela. Abriu a porta.

Edgar Brunme estava estirado na poça de vômito e fezes. Seu corpo estava coberto por traças rasgadas do traje que usara. Desacordado. Arrotava veementemente e ao mesmo tempo expelia fluidos sem ter consciência disso. Flaureta percebeu que os ossos do corpo do conde se mexiam por trás de uma camada adiposa. Seu patrão, Ed, estava se transformando em outra coisa. E ainda esse processo de modificação não terminara.

- Socorro! – Ela gritou. – Sr. Edgar não está bem!

Quando ela caminhou para a porta, intencionada a gritar outra vez, o braço direito de Ed segurou seu calcanhar.

- Não chame ninguém. – Disse o conde com os globos oculares projetados para fora, assegurados apenas pelas córneas.

Ela deu um salto para trás, perdeu o equilíbrio e caiu de cóccix no chão. Flaureta sentiu uma fincada aguda na parte inferior da coluna e não conseguiu emitir o som de seu grito mudo. O ar lhe escapara dos pulmões. Usando os braços para remar, a mulher se distanciou do Conde de Vyndegard. Chegou até a porta e usou as paredes de aparador para se levantar. Gido e Mércia, o jardineiro e a doméstica, casal que trabalhavam na Mansão Brunme, chegaram para socorrer Flaureta e, em seguida, seu patrão. Contudo a porta do aposento fechou violentamente na face de Gido, quebrando-lhe o nariz. Uma sangueira escorreu de suas vias aéreas. Seus olhos se fecharam em manifestação à dor que sentia naquele momento agoniante. Mércia guiou seu cônjuge até a parte de baixo da casa. Flaureta foi junto com eles, pois nada podia fazer para adentrar no quarto de Edgar ou salvá-lo do inexplicável que acontecia lá dentro. Mal sabia o que estava acontecendo, sentia somente uma energia densa que lhe fazia pensar em tudo de ruim que não gostava em sua personalidade ou aparência.


- Eu sou uma besta feia e desajeitada! – Disse Gido, quase chorando, enquanto era auxiliado para descer os degraus.

De alguma forma isso não poderia ser coincidência. Tal energia alcançara Gido e o fizera detestar a si mesmo. Flaureta pensou. Ela trabalhava há muito tempo para os Brunme, desde a época do avô de Edgar, quando sua avó era a governanta da mansão e sua mãe, uma auxiliar.

A mulher foi até a antiga escrivaninha de Jerome Brunme, enfiou a mão dentro de um vazo de estanho e retirou um molho de chaves do fundo. Usou uma grande e enferrujada para abrir a gaveta. De lá, retirou uma Colt calibre 45. Flaureta voltou para a porta do aposento de Edgar e apontou para a maçaneta no mesmo instante em que ela girou e Ed abriu a porta. Seu corpo nu e sujo estava semicoberto por um lençol branco que antes forrara o leito. A governanta tremia as mãos enquanto apontava a arma para o patrão. O olhava dos pés à cabeça. Mas não era ele.


- Quem é você? – Ela perguntou expressando medo. - Sou eu, Flaureta. – Respondeu o homem. – Ed Brunme!

Ele se tornara um homem alto de um metro e oitenta e seis de altura. Uma barba máscula, cerrada, mas com tendência a ser volumosa. Cabelos pretos bem hidratados naturalmente e olhos bem negros e hipnotizantes por excesso de confiança. Sua simetria facial era escultural, incluindo o corpo delineado de um guerreiro espartano. Edgar tornara-se o homem mais belo que os olhos de Flaureta já viram. Contudo não sabia se atirava no suposto intruso ou acreditava no homem. Visto o fenômeno que ela e os demais presenciaram naquela mansão, a mulher abaixou o colt e desmaiou.


SEGUNDO FRAGMENTO


Os criados da Mansão Brunme estavam agitados correndo para todos os cantos ornamentando o grande salão com o auxílio da experiente equipe de eventos cerimoniais do Sr. e Sra. Escovor. Naquela noite Edgar Brunme sediaria o baile anual dos aristocratas. Ele saiu de carruagem para adquirir novos trajes para suas novas medidas. Soou um som teatral que pertencia à campainha. Flaureta dirigiu-se a atender a porta usando uma bengala devido às fortes dores no quadril que lhe assombraram após o ocorrido que qualquer criado evitou comentar. Afinal, quem acreditaria neles se até Edgar Brunme se fez de desentendido?


Quando abriu a porta, deparou-se com uma elegante mulher trajando um vestido amarelo e chapéu florido. Atrás da primeira mencionada, havia outra. Uma mulher alta com semblante neurastênico. Vestia preto e fechado até o pescoço. O rosto semicoberto por um véu preto transparente até os lábios inferiores anêmicos. A segunda mulher já se aproximava dos 60 anos e as rugas em sua face denunciavam isso.


- Baronesa! Sra. Brunme! - Flaureta abriu um sorriso.


A baronesa era jovem. Tratava-se da irmã mais velha de Ed. Casou-se no início do ano passado com o Barão de Aralde. Seu nome era Emelina e ela vinha acompanhada da mãe, que acentuou sua depresssão pré-existente após viuvar. Gabriella Brunme nunca foi uma mulher muito risonha nem simpática, mas de fato piorara em demasia seu humor melancólico e quietude assombrosa.


- O que você faz de bengala, Flau? – Perguntou com demasiada delicadeza a Baronesa de Aralde.


Flaureta tinha grande apreço pela mulher desde pequena. As duas entendiam-se muito bem. Já a relação com Edgar nunca foi muito íntima, mas o título de Vyndegard passara para ele por ser o único filho do falecido Conde. Entretanto até para os assuntos políticos Emelina tinha uma aptidão exageradamente superior a do irmão, além de ser bela por natureza e sociável. - É que eu me desequilibrei e... – E nesse momento a carruagem de Edgar encostou-se ao hall de entrada. O cocheiro abriu a porta e a Sra. Brunme tomou um susto, levando as mãos até os lábios.


- Mamãe?

- Não?! – Gabriella Brunme exclamou em dúvida. – Mas... você tem os olhos do meu filho. E a voz do meu filho.

- Quem é você? – Emelina perguntou ao nobre cavaleiro extremamente bonito que acabara de sair da carruagem. – Ela parecia estar incomodada diante de tanta beleza.

- Sou eu, Edgar! – O conde respondeu com um sorriso de canto para a irmã.

- Eu posso lhes jurar que é o Ed Brunme, Condessa. Baronesa. – Flaureta lhes disse enquanto curvava-se discretamente para o chão, envergonhada por afirmar tal absurdo.

- Deus olhou para mim, mamãe.


Gabriella fraquejou e quase caiu no chão, mas o cocheiro de Edgar impediu sua queda.


– Levem a condessa para seus aposentos. – Flaureta disse aos criados mais próximos. – Ela precisa de um longo descanso até o anoitecer.


Emelina rodeava o irmão que antes era mais baixo que a própria. Fazia uma análise minuciosa de cima a baixo. A mulher se abaixou e puxou a bainha da calça de Ed, deparando-se com uma grande pinta de nascença que tinha cor de borro de café. Ela se afastou quando ele sacudiu a perna, ordenando que ela parasse com aquilo.


- Não pode ser! – Emelina exclamou. – É a marca de nascença do meu irmão!

- Eu disse que eu sou eu! – Ed gritou.


A baronesa adentrou no solar e subiu o lance de escadas sem olhar para trás. Foi diretamente para seu quarto, assustada. O humor do conde piorara devido a irmã tê-lo feito perceber que sua mancha ainda existia. Ed estava tão satisfeito com a nova aparência que não havia notado que nem tudo tinha sumido. Ao retornar para seu quarto, retirou o manto vinho persa que cobria o espelho de Zediva. Quando o fez, viu um vulto de cabelo longo se esquivar para a lateral e desaparecer de sua visão.


- O que foi isso? – Perguntou assustado.

- Olá, Conde de Vyndegard. – A frase surgiu embaçada no vidro. – Não há ninguém aqui além de nós dois.


Edgar caminhou até a parede que o espelho se recostava. Nada havia ali atrás. - Não importa! Eu quero que você tire essa mancha no meu tornozelo. E sem barulho, porque foi muito difícil encobrir todo aquele ritual.


- Uma simples mancha é fácil retirar. – Respondeu o espelho de Zediva.

- Então faça!


Ed ficou encarando o espelho. Sua postura alinhada e musculosa estava bufante em frente ao reflexo do espelho. Ele sentiu uma forte queimação no tornozelo e puxou a bainha de sua calça. A marca de nascença regredia conforme a queimação aumentava. O rapaz soltou um grito silencioso para não chamar atenção. Correu para seu leito e pulou em um travesseiro para abafar o berro que necessitava exalar pela garganta. A sensação era de vários cortes de cinco centímetros de profundidade em seu tornozelo. Quando a mancha sumiu, a queimação cessou. Edgar soltou gargalhadas pausadas, impressionado com o poder do espelho quando se deparou com um tornozelo livre daquela marca grande de borro de café. Ele olhou para o espelho de joelhos em cima da cama e viu a imagem de um homem em frente ao vidro. O rosto do reflexo estava roxo acinzentado em estado de livor mortis. Os lábios elásticos e deformados. Não aparecia a arcada dentária. No interior da cavidade bucal havia algo escuro e vazio. A epiderme e a derme se descolaram dos músculos faciais. A criatura tinha baixa estatura, era calvo e os olhos embranquecidos como os de um defunto em rigor mortis. Vestia um gibão antigo de tradição inglesa.


Edgar se levantou bruscamente e correu para a porta. Quando olhou para o reflexo, a criatura havia saído. Então, vagarosamente, retornou a maçaneta para o estado habitual e se aproximou do espelho com passos peculiares. Apanhou o manto persa do chão. Olhou para trás, certificando-se de que não havia mais ninguém ali. Ao rever o espelho, enxergou o reflexo de uma mulher nua com os mesmo aspectos físicos espectrais do homem de gibão. A diferença é que a mulher estava com o corpo nu cadavérico todo retorcido e o rosto desfigurado. Os olhos cegos miravam em Edgar. Ele cobriu o espelho com o manto cor de vinho e simultaneamente produziu um grito espontâneo. Saiu o mais rápido que pôde do seu aposento.


Ele se dirigiu apressadamente para o balaústre da escada e ficou aliviado por ver Flaureta subindo os degraus de bengala. Estava muito feliz por ver um rosto inofensivo. A governanta observou sua face espantada e ergueu uma das sobrancelhas num gesto de análise.


- Algo de errado, Sr. Brunme?

- Não, Flau! – Ele respondeu sua criada de uma maneira diferente do hábito ranzinza.


A sobrancelha erguida de Flaureta agora competia com a outra que estava relaxada. Mais uma dúvida curiosa surgiu em sua mente. Seu patrão estava simpático e parecia feliz por vê-la.


- Sr. Brunme, suas vestes chegaram. Inclusive o traje que usará hoje no baile.

- E onde estão essas magníficas peças? – Edgar perguntou de uma forma que Flaureta não sabia se era excesso de simpatia ou ironia.

- Estão na sala de música.

- Obrigado! – Ed agradeceu. O que de fato também era incomum de seu comportamento costumeiro.


Ele desceu os degraus da escada e sua sombra refletida pelo fogo dos castiçais lhe acompanhou no trajeto até o primeiro piso, repetindo seus movimentos fielmente. Edgar seguiu por um extenso corredor solitariamente. Seus passos eram os únicos produtores de sons em meio ao cômodo vazio. Um rangido diferente ecoou em seus tímpanos. Vinha do andar acima. Era um rangido lento. O jovem conde começou a assoviar. Parecia ter esquecido completamente o que acabara de presenciar em seu quarto. Estava muito ansioso para experimentar o novo traje que pretendia usar para o baile. Ao chegar à porta do corredor que lhe dava acesso à sala de músicas ouviu dois sussurros. Um diferente do outro. Ele espiou, bem devagar, por cima do ombro direito. O corredor atrás de suas costas era coberto por uma grande penumbra. Os tais sussurros continuaram. Vinham de um cômodo não muito distante. Eram femininos. Cochichavam sobre um arranjo de orquídeas. Edgar ouviu um som de estilhaço de vidro ecoar pelo corredor ermo, prosseguindo um diálogo entre duas pessoas em outro recinto.


- Ai! - Você se machucou?

- Eu cortei o dedo, mas não foi nada demais.


Ed então abriu a porta da sala de música e lá estava um grande piano de cauda em frente a ele, mas bem distante. A lareira tinha sido acesa por alguém. Talvez por Flaureta, talvez por Gido, o jardineiro. Ele pouco se importava com isso. Adentrou no ambiente e logo viu seus trajes deitados sob uma grande mesa de mogno. Em frente à mesa havia um grande espelho de parede.

- Sr. Brunme? Sr. Brunme? – Flaureta chamava pelo nome do patrão repetidamente. Os olhos de Edgar estavam profundos como dois poços escuros. Ele olhava para o seu reflexo no espelho, mas ao mesmo tempo não encarava sua imagem. Sua visão estava vagarosa. Ao menos era a impressão que sua criada havia abstraído


- Sim? – Após algum tempo de persistência, Ed a respondeu. Ajeitou a gola sobressaltada de seu terno lilás que comprara para a noite do baile. Mesmo sem precisar, ele tinha um espartilho masculino modelando o corpo. O utensilio trazia-lhe confiança. Edgar pegou a cartola da mesma cor do terno que estava em cima da mesa de mogno e a colocou na cabeça.


- Vamos, Flau. – Disse ele enquanto girava sua bengala vitoriana com a mão direita e direcionava-se para a saída da sala de música. – Seria bom providenciarmos iluminação elétrica aqui. Ouvi dizer que algumas propriedades já possuem. Flaureta acenou para o patrão. Ele estava estranhamente confortável. Suas novas conquistas através do espelho lhe fizeram relaxar para os efeitos colaterais que presenciara recentemente. Os dois adentraram no extenso corredor após a sala de músicas. Escuro. Os sons da galeria acima ecoavam naquele ambiente. E então se iniciou, sem interferência manual, uma música que invadiu os ouvidos de Edgar e Flaureta.


- O que eles estão fazendo lá em cima? – Ed indagou.

- Sr., este som não vem lá de cima. – Respondeu sua criada. – Vem da sala de música. E parece ser do fonógrafo.


Edgar olhou para trás e se concentrou. De fato vinha de lá. Ele retornou para a porta e a abriu com certa agressividade. Flaureta foi atrás. O fonógrafo estava produzindo o som de uma marcha comemorativa ou cerimonial, não importava. A manivela girava sem ninguém tê-la acionado. Edgar encarou o fonógrafo e conferia o reflexo no espelho. Repetia isso inúmeras vezes até que ele parou de olhar para o espelho. Baixou sua visão no banco ao lado da mesa que suportava o instrumento musical. Flaureta, vendo a indecisão de seu patrão, tomou seu lugar e silenciou o fonógrafo. Assim sendo, Ed apontou para o espelho.


- Você vê alguma coisa, Flau?

- Nada que não devesse Sr. Brunme. – Ela respondeu sem entender bem a proposta da pergunta.


Edgar girou os calcanhares e saiu do local sem olhar para trás. A governanta veio logo atrás, preocupada com seu patrão que, naquele momento, suava frio em passos longos. Ao subir a escadaria, Ed esbarrou em sua irmã, Emelina. A Baronesa de Aralde soltou um grito ligeiro.


- O que pensa que está fazendo? – Ela sacudiu o vestido para desdobrá-lo.

- Saia da frente! – Ele respondeu.

- Ed! – Gabriella Brunme exclamou, escorada na porta de seu aposento no fundo do corredor.


Ele ignorou o chamado da mãe. Adentrou em seu quarto e bateu a porta. O Espelho de Zediva estava coberto pelo manto persa. Edgar retirou o manto e encarou o espelho. Seu reflexo era de um belíssimo homem viril.


- Está gostando, Edgar? – Perguntou o espelho através de frases escritas no vidro.

- Por que eu estou vendo espíritos? Demônios... eu não sei o que são afinal!

- Ignore-os. – Disse o espelho. – Desfrute do auge de sua vida.

- Eu receberei uma centena de convidados daqui em poucas horas e não quero minha casa assombrada por essas coisas!


Quando Ed disse isso, enfurecido, em frente ao espelho, surgiu um reflexo ao seu lado. O pescoço estava virado para ele. Era a imagem de uma mulher alta e elegante, contudo roxa em estado de livor mortis, com lábios anormalmente esticados, denunciando uma sombra nefasta a partir da cavidade bucal que ocultavam os dentes e a língua. O espectro desapareceu em meio segundo.


- Tia Maria? – Ele indagou assustado. Sua caixa torácica expandia mais que o normal para acompanhar a adrenalina que percorria em suas veias.

- O Conde de Vyndegard gostaria de mais algum pedido? Você causará um grande impacto visual em Sophia de Bardanhain hoje a noite. Não! - De repente, exclamou o próprio espelho em propósito de contradizer a si mesmo.- Eu vejo que ainda falta autoconfiança verdadeira a nível desse grande homem. Afinal, passar tantos anos preso à casca de um ogro tão asqueroso deve ter degradado o seu estado psicológico.

- Como você sabe? – Edgar não havia contado ao espelho como se sentia internamente.

- Eu sei de tudo sobre você, Edgar. Estou aqui para lhe tornar um ser perfeito. E você está transpirando por baixo do terno. Homens belos e confiantes não transpiram por medo de algo tão desvalorativo. Esse dia deve ser o seu dia! Você precisa estar esplêndido. Absoluto!


Emelina abriu a porta do quarto do irmão e o viu encarando o próprio reflexo. A última mensagem do Espelho de Zediva desapareceu. Ela parecia ter se esquecido de proferir a queixa que lhe trouxera até ali. Algo a ver com o tombo que levou por culpa do irmão. Aproximou-se de Ed e olhou para o reflexo.


- Ao menos as minhas amigas não irão rir mais do fato de eu ter um irmão horrivelmente feio. – Emelina comentou enquanto encarava Zediva. – Agora elas só comentarão o quanto seu humor é sem graça. Mas a beleza é inquestionável. Satanás lhe serviu bem. - De maneira debochada, a irmã mais velha de Edgar se retirou do cômodo encarando-o com um toque de perversidade.


Mesmo havendo elogio em meio às palavras de Emelina, o tamanho do desdém que ela deixava emanar sobre Edgar era colossal. O conde a seguiu para fora do aposentou, alcançou-a no corredor e, quando ela girou os calcanhares, pega de surpresa pelo homem, ele levantou a mão e desferiu-lhe um tapa no rosto. A baronesa caiu no chão devido à força do irmão. Uma rubefação surgiu na hora e ela gritou de dor, nervoso e principalmente ódio. Chorou. Flaureta e Gabriella Brunme levantaram Emelina que, após erguer-se em pé, partiu para cima do irmão, desferindo-lhe socos em seu peito e ombros. A Condessa de Vyndegard e a governanta afastaram os irmãos e levaram a baronesa para seu aposento. Ela gritava colérica.


- Você nunca será um homem de verdade! – Emelina berrou. – A besta ainda vive em você, imbecil!


Edgar soltou um grito tão alto que toda a Mansão Brunme pôde ouvir. Os criados que organizavam o grande salão para o baile pararam seus afazeres por alguns segundos, assustados. Ed retornou ao quarto e chutou o espelho. Sentiu uma vibração entre o vidro e a ponta dos dedos de seu pé. Algo protegia aquele objeto. Seu reflexo bufava para ele.


- Não desconte em mim, Edgar. – Zediva escreveu. – Eu estou aqui para lhe ajudar apenas.


- Você ceifa metade da minha vida para conceder um pedido meu. Mas sempre falta alguma coisa! – Ele gritou com o espelho. – Isso não é ajudar!

- Não? Emelina sempre foi má com você, mas agora sua beleza, sua altura, sua virilidade e força ofuscam o ego de superioridade dela. “-O mais belo dos Brunme-” Todos dirão hoje. Você só precisa ser mais confiante.

- Faça-me confiante, faça-me forte! – Edgar gritou com o espelho. – Faça-me sentir dor! Despedace minha vida novamente se isso for me tornar perfeito!


E ele se curvou diante o espelho, sentindo uma forte dor e pressão intracraniana. Todos os ossos de seu corpo latejaram, esfriaram e esquentaram diversas vezes. Edgar experimentou um choque térmico, uma febre descomunal, calafrios e desmaiou após uma fortíssima dor de cabeça.


Ao despertar, ele estava em sua cama. Já havia escurecido completamente. Temeu ter perdido a hora do baile. Não recepcionara os primeiros convidados, será? Mas logo pensou que uma entrada triunfal, digna de sua perfeição, seria ser recepcionado em sua própria cerimônia, descendo os degraus de sua escadaria à vista da sociedade medíocre de Vyndegard e vizinhos regionais. Edgar ouviu riscos dentro do quarto. O espelho estava descoberto e o refletia deitado na cama. Ele se levantou, encarando Zediva. O som tornava-se cada vez mais forte. Esperava deparar-se com mais uma imagem distorcida de alguma criatura produzida pelo espelho. Todavia somente escutava o maldito som dos riscos intensos. Parecia que alguém estava unhando o chão ou a parede. Entretanto não havia presença ali senão a dele, mesmo através do reflexo. A última presença desconfortante que vira foi a de um menino trajando vestes do século XVII. Ele estava de costas para Ed na sala de música, sentado no banco ao lado do fonógrafo. Girava a manivela com o único braço que tinha. O outro fora decepado. Parecia ter sido vítima de guerra. Apesar de Edgar não ter visto o rosto traumatizante do menino pelo reflexo, ele percebeu a semelhança da pele, que estava acinzentada e roxeada como a das outras presenças anteriores.


Distraído, relembrando da última cena que decidiu não compartilhar com Flaureta, ele procurou o menino através do reflexo de seu aposento. Também se lembrou da mulher nua e da figura do senhor vestindo traje militar inglês. Nem Maria Rikster apareceu para ele. O som dos riscos estava se intensificando. Ed olhou para o teto através do espelho e viu a imagem de uma mulher coberta por um manto branco. O traje não obedecia a gravidade, nem seu cabelo. A presença tratava o teto como se o solo fosse. Estava agachada e recolhida, unhando o teto com suas unhas quebradiças. Seu cabelo escuro cobria a face. A epiderme da mulher estava cadavérica. A explicação era a mesma que a de todos que o espelho reproduzia. Eram presenças distorcidas, deformadas, pútridas e tristonhas. De alguma forma a presença sabia que estava sendo vista por Edgar. Ela parou de unhar o teto e olhou para Ed através do espelho. Os fios do cabelo preto e longo se disseminaram, tornando a face visível. Sua boca escancarada parecia um grande buraco negro. Os lábios roxos e ressecados estavam colados nas gengivas desdentadas. Ela produziu um sussurro incomunicável. Suas pernas lhe trouxeram próximo ao espelho. Parecia não ter ossos para lhe dar limite na flexibilidade.


Edgar tentou pisotear o espelho com uma força brutal, mas a mesma vibração que sentira antes lhe empurrou para longe. Um coro espectral gritou “Não!”. Os quadros mais próximos despencaram dos pinos. O dossel de sua cama caiu em cima do leito. Flaureta abriu a porta alguns segundos depois.


- O que faz no chão, Sr. Brunme? Edgar olhou para a mulher e encarou o espelho. Tinha outras imagens daquelas presenças distorcidas atrás de Flaureta.

- Flau, você pode cobrir o espelho para mim? – Ele perguntou enquanto se levantava.

- Sim, Sr. Brunme. – Flaureta adentrou no quarto e apanhou o manto de dentro de um baú. Cobriu o espelho. Ela observou o dossel caído e os quadros no chão.

- O que aconteceu aqui? – Então percebeu que Edgar não estava mais no quarto.


Flaureta apanhou os quadros, sozinha no aposento de seu patrão. Pendurou todos novamente. Enquanto ao dossel, preferiu acionar Gido para refazer o trabalho braçal mais adequado. Retirou-se de lá. Os primeiros convidados já chegavam de carruagem e adentravam na Mansão Brunme. Eram recepcionados por Emelina e Gabriella.


Emelina ouviu alguém descendo a escadaria e seguiu com o fluxo dos primeiros convidados até o cômodo seguinte à sala de recepção. Era seu irmão quem descia. Ela cruzou os braços e fez a mesma expressão facial de deboche e superioridade que ele costumava encarar desde a infância.


- Peça-me desculpas! - A baronesa exigiu. Utilizada uma forte maquiagem para disfarçar a rubefação.

-Não, você mereceu. – Edgar respondeu de tom moderado.

- Agora! – Emelina gritou. Ed ignorou a presença da irmã e passou por ela.

- Os convidados não estão por ai. Já está fugindo deles?

- Minha entrada será triunfal. – O conde girou os calcanhares numa pose confiante. – Somente irei aparecer quando o salão estiver cheio.


Emelina murmurou, observando o irmão dos pés à cabeça.


- Você está pronto para passar vergonha?

- Isso não vai acontecer. – Edgar sorriu para ela pelo canto da boca e retirou-se dali, demonstrando total desdém pela irmã. Ele interrompeu seu trajeto e olhou novamente para Emelina. Apontou para sua face, de longe. - Mas e você? essa maquiagem de palhaço é o suficiente para disfarçar esse corretivo merecido? Não quero sentir vergonha por ter uma irmãzinha tão feia.


TERCEIRO FRAGMENTO


O senhor e a senhora Lamarke adentraram na Mansão Brunme acompanhados por seus filhos, Samuel e Etheon. Gilbaran Lamarke era o maior mercador marítimo do país de Aizarga, colônia inglesa. Sua frota dispunha de duzentos e setenta navios mercantes. Os herdeiros de Lamarke tinham idades próximas à de Edgar e ambos estavam acompanhados de suas belas esposas. Eles foram bem recepcionados por Flaureta e Gabriella Brunme.


Em seguida, atravessou o hall da mansão a Condessa de Brachóvia. Ela estava sozinha. Usava uma larga crinolina de aço por baixo do vestido vermelho e dourado. A gola florida era bem arejada e ressaltava sua feminilidade. Ela tinha um pingente de rubi no pescoço. Herdara oito vinícolas do pai e uma grande quantia em espécie do marido que faleceu precocemente, assassinado por um javali durante a caça.


As próximas pessoas a chegarem eram amigas de Emelina. Todas eram esposas ou filhas de homens importantes. Ou nobres, ou burgueses ricos, ou políticos e magistrados. Uma delas, a loira de olhos acinzentados, era neta de um duque muito poderoso.


Um casal distinto, vestindo preto, adentrou pela porta e cumprimentaram Gabriella Brunme. A mulher parecia ter certa afinidade com a condessa. Estes eram o casal Winchester e vieram da América para prestigiar os Brunme. William era filho do fundador da indústria bélica que fabricava rifles.


A orquestra de Santurlé realizava o entretenimento sonoro do baile dos aristocratas. Os criados da mansão circulavam pelo grande salão com bandejas de aperitivos e bebidas. Deviam ter, pelo menos, uns oitenta convidados presentes e não paravam de chegar carruagens em frente à mansão.


Edgar desceu as escadas e virou para a direita em direção ao grande salão. Flaureta estava em frente ao portal para anuncia-lo, assim como ele pediu.


- Peço a atenção de todos! – Disse a governanta ao bater uma colher de prata no cálice. A orquestra silenciou por um momento.

- Com vocês, vosso anfitrião, Edgar Brunme, o Conde de Vyndegard.


Edgar adentrou, trajando seu terno lilás de gola rechonchuda e bengala com uma ametista encrostada na empunhadura. Sua barba cerrada e máscula contornava a face viril de homem. Seu porte físico era destacado pelo terno slim que cobria o corpo. Todos os convidados ficaram boquiabertos. Afinal, Ed Junior era feio, baixo, obeso e inseguro. Não um belo cavaleiro tão bem apresentável e seguro de si.


- Nossa! Emelina! – Irene, a neta do duque Melliatu, exclamou surpresa ao ver Edgar. – O que houve com o monstrinho do seu irmão? Essa perfeição é o Ed?


As outras mulheres também se surpreenderam. Emelina cruzou os braços, extremamente irritada. Uma de suas amigas, Sofia de Bardanhain, pousou as mãos em seus ombros, confortando-a. Sofia tinha cabelos cacheados e ruivos. Olhos caramelo e uma face fina e delicada. Vestia uma sobressaia aberta sobre outra saia com babados e laços. A gola era aberta, deixando seus ombros desnudos e ressaltando seu colar de pérolas. A amada de Edgar de fato era uma das mulheres mais lindas, senão a mais, naquele baile. Seu pai era magistrado e a mãe, herdeira de uma grande fortuna em plantações de café, milho e cevada. Seu tio era um dos generais do exército inglês da Rainha Victória.


Edgar aproximou-se dos convidados que o olhavam com expressões curiosas e também conflituosas, lhe apreciando como se ele fosse um baú cheio de barras de ouro cintilante.


- Primo? – Disse um jovem rapaz que parecia fisicamente com o antigo Ed, só que era um pouco mais alto, magro e bem cuidado. Não era dotado de tanta beleza, mas era ajeitado, comportado e de boa família.

- É muito bom vê-los por aqui, Vince, Alice, Ector! – Edgar cumprimentou os primos, filhos de Maria Rikster.

- O que houve com você? – Alice perguntou com semblante deveras preocupado.

- Deus decidiu ser justo comigo. – Ele respondeu.

- Ed! – Os olhos de Alice pareciam a superfície de um lago agitado devido a uma chuva torrencial. Ofuscantes. – Por acaso você não está com o espelho de bronze da mamãe, está?

- Sim. Foi o melhor presente que alguém poderia dar a mim. – Edgar comentou inflando o peito. – Tia Maria era uma mulher incrível.

- Não, Ed! – Sua prima se aproximou dele, encarando seus olhos. – Aquele espelho matou minha mãe!


O Conde de Vyndegard não se abalou com a declaração de Alice Rikster. Ele procurou os olhos de Ector e Samuel, pois suspeitava que ambos compartilhavam do mesmo pensamento da irmã. Era duvidoso. Nem todos os Rikster queriam culpar a morte de Maria por proveniência do espelho. Seria menos doloroso imaginar que a morte natural a alcançou ao invés de encarar um assassinato sobrenatural, que atualmente tinha relevância para se acreditar, o qual seria que Maria Rikster teve sua vida precocemente ceifada por um espelho amaldiçoado. Ed lembrou-se de ter visto o vulto de sua tia bem ao seu lado no reflexo.


- Com licença, Alice, Ector, Samuel. – Educadamente, Edgar anunciou que estava se retirando dali. – Devo cumprimentar outros convidados.

- Para com essa loucura! – Disse Ector a Alice assim que o primo Brunme se distanciou. - Agora o problema é dele!


O jovem Thomas, um menino de apenas seis anos, filho de um casal de posses, -Thomas Andrews e Eliza Pirrie, do Reino Unido-, saiu de perto dos pais e caminhou solitariamente para fora do aglomerado de gente, distanciando-se do grande salão. No cômodo ao lado viu uma escada e ele a subiu, degrau por degrau, apoiando-se no balaústre. O corredor do segundo piso estava ermo. Era onde se encontravam os quartos. A porta do aposento privado de Edgar tinha sido aberta e Thomas ouviu sussurros lá de dentro. Ele entrou e a porta se fechou sem auxilio manual. O menino acompanhou os sussurros até ficar de frente ao espelho. O vidro embaçou.


- Como vai você, jovem Thomas? – Surgiu uma frase.

- Quem está fazendo isso? – Perguntou o menino britânico.

- Eu sou o Espelho de Zediva. – A entidade se apresentou. – E vejo que você tem muita ambição.

- Eu quero ser importante assim como o papai! – disse ele ao espelho, sorrindo inocentemente.

- Seu nome será eternizado. Você será mais famoso que o próprio progenitor.

- Por quê? O que eu farei?

- Você será um profissional renomado. – Respondeu-lhe o espelho. – Vejo que fará parte de um grande projeto que será conhecido pelo mundo inteiro. Eu serei seu e você será meu neste momento.

- Você quer ser meu agora? – Thomas perguntou de forma tão infantil que, se fosse humano, o espelho riria por presenciar tanta ternura. O menino carregava expressões de uma face sonhadora.

- No momento estou sob a posse de Edgar Brunme, mas seu dia chegará. Estaremos juntos. O grande oceano lhe aguarda!


Thomas Andrews Jr sorriu ao ouvir a declaração do espelho. Ele balançava seu corpo pequeno pela timidez. Acenou, dando tchau ao espelho. Saiu pela porta e desceu as escadas.


- Onde você esteve querido? – Perguntou Eliza, sua mãe.

- Mamãe, o oceano será meu! – Thomas disse com um enorme sorriso no rosto.


Após cumprimentar dezenas de pessoas influentes, receber elogios tanto de sua beleza quanto do humor devido à segurança em si que Edgar atualmente demonstrava ter, ele avistou sua amada Sofia conversando em um íntimo círculo de senhoras e senhoritas. Infelizmente nele estava Emelina. Ed avistou, não muito longe, Kalest de Aralde, conversando sobre questões políticas e venda de plantio com Robvil Afelper, um senhor de quase noventa anos e dono de sete fazendas. Afelper detinha o monopólio do comércio de carne de toda a colônia e ainda exportava para as ilhas britânicas. O Barão de Aralde, por sua vez, comercializava sal.


- Kalest! – Edgar o chamou. - Você está bonito, Ed! – Disse seu cunhado.

- Obrigado. – O conde apontou para o círculo intimo das mulheres onde estava Emelina. – Sua esposa me contou que está esperando que você a chame para cumprimentarem, juntos, os convidados no grande salão.

- Ela não lhe contaria isso! – Kalest questionou-o. – Vocês dois nem se dão bem, Ed.

- Você vai arriscar? – Edgar pressionou o barão, invadindo a intimidade dos olhos do homem com o seu olhar convincente.

- Com licença, Sr. Afelper. – Disse o Barão de Aralde.


Ele foi até Emelina, beijou sua mão, sua testa. Cumprimentou as meninas e retirou sua esposa do meio para andarem de braços cruzados. Emelina olhou para Sofia com certo incomodo por ser obrigada socialmente a afastar-se dela. Então Edgar aproveitou o momento para se aproximar da amada. Ela não o percebera enquanto vinha, pois o conde fez isso por suas costas, pegando-a desprevenida com as amigas.


- Sofia. – Ed pegou em sua mão e deu um beijo.

- Ogrinho? – A bela mulher comentou, mas não de deboche. Estava surpresa com a nova aparência de Edgar. – Ops! Desculpe!

- Não precisa se desculpar. – O homem sorriu para ela. – Esse apelido é carinhoso, mas não me define.

- Agora não. – Ela retrucou numa leve risada coletiva e abafada entre as amigas.

- Você está lindo. – Disse Irene ao enrolar seus cachos dourados nos dedos da mão.

- E bem alto. – Comentou Alisha Macdone, Baronesa de Nápolo. – O verdadeiro Edgar lhe contratou para se passar por ele?

- Assim como seu marido, o Barão de Nápolo, contratou um sósia para passar o resto de seus dias ao lado da senhora. – Edgar respondeu a mulher de forma sutil. Sua agressividade e insegurança haviam desaparecido. Todas as mulheres riram do comentário do conde, menos Alisha, que obviamente se ofendeu.

- A senhorita gostaria de caminhar comigo?


Sofia hesitou por alguns segundos. Olhou para os lados, pondo as mãos no vestido e apertando-o em imersão conflituosa e silenciosa. Ela olhou para Edgar, mas sem encará-lo nos olhos. Mordeu os lábios, pensativa. Talvez quisesse escapar dele, talvez quisesse fazer um charme.


- Tudo bem, Ed. – Disse ela ao aceitar o braço do homem. – Vamos dar uma volta.


Os dois saíram do meio da multidão após cumprimentarem algumas pessoas em meio ao atalho de fuga. Foram em direção aos fundos da mansão e saíram por uma porta lateral. Sofia fora na frente, envolvida pelas mãos de Edgar em sua cintura. Ela não estava entendendo para onde o conde queria leva-la. Mas logo viu. Deparou-se com um exorbitante jardim de tulipas. As flores vaziam intercala de fileiras paralelas. Vermelhas com amarelas e brancas com laranjas. Nas laterais do jardim tinham duas fontes de água. O som do despejo produzia sensação de tranquilidade.


- Isso é lindo! – Sofia caminhou até o centro do jardim. – Emelina nunca me mostrou isso!

- Mas eu estou lhe mostrando. – Ed se aproximou da amada Sofia. – E o jardim pode ser seu. Um belo e romântico lugar. – Ele uniu seus lábios aos dela.


A mulher deixou o beijo acontecer, mas numa fração de segundos, ela se desvencilhou de seus braços e distanciou-se.


- Não dá! - Por quê? – Edgar não demonstrou, mas estava frustrado.

- Você está lindo, Ed. Mas eu... – Sofia levou a mão esquerda até o cotovelo direito. Espremeu os lábios, pensando na resposta que daria ao homem. – Eu gosto de homens loiros e sem barba! É isso! - A mulher disse de forma impulsiva. Expressou qualquer coisa que veio rápido em sua mente.

- Eu posso! – As artérias da testa do Conde de Vyndegard tornaram-se pulsantes. – Eu serei exatamente assim!


Edgar Brunme adentrou, às pressas, em sua residência. Passou pelos convidados sem falar com ninguém. Ele ouviu Flaureta lhe gritando por trás, mas não deu a mínima. Dobrou a esquerda após passar pelo grande salão e subiu as escadas. Abriu a porta de seu quarto e o manto persa estava sob os pés do espelho. Ed nem notara isso.


- Faça-me loiro e remova minha barba! – Gritou em frente ao espelho.

- Seu desejo será realizado. – Zediva respondeu.


Seus folículos pilosos desidrataram até ressecar ao extremo, deixando Edgar desfigurado e sem ar. Seus cabelos e barba caíram no chão. Ele parecia um espantalho aos fiapos. Depois que tal processo terminou, os poros da pele dilataram-se e uma forte ardência se iniciou dos folículos pilosos mesclado com uma sensação de várias agulhas lhe fincando até nascerem todos os fios loiros de seu cabelo. A sua face estava lisa assim como pediu. Durante tal processo ele uniu os dentes com muita força para abafar o urro.


Atrás dele tinham várias presenças distorcidas em estado de putrefação. As cavidades bucais daquelas infelizes criaturas pareciam gritar eternamente, mas o buraco negro escancarando as mandíbulas fazia o eco dos berros sofridos retornarem para cada interior de seus ventres sem vida. Os espectros estavam por todo o quarto de Edgar, inclusive em cima de sua cama, do dossel, no chão, engatinhando ou em pé no teto e nas paredes, sem respeitar a lei da gravidade. Ele encarou os reflexos por algum tempo, ouvindo o profundo sussurro que as criaturas do espelho produziam. Sem demonstrar muito medo, pois já estava se acostumando, ele se retirou do aposento para se reencontrar com Sofia de Bardanhain, mas agora com outra aparência. Os contornos faciais de Brunme foram mantidos.


Lá estava Sofia, unida novamente ao íntimo círculo feminino de amizade. E Emelina também estava lá. Ele se aproximou da amada. Olhou para a irmã com ar vilipendioso e envolveu as costas de Sofia com um dos braços para ela se virar.


- Eu sou o que você queria.

- Como? – Sofia levou as mãos à boca. – Seu rosto é reconhecível, mas como você fez isso?

- Venha comigo até a galeria acima e eu lhe direi. – Edgar pegou em seu pulso e a puxou sem agressividade.

- Pare! – Emelina gritou com ele.

- O que é?

- Edgar!? – A Baronesa de Aralde reconheceu a face do irmão, mas agora loiro até os ombros e sem a sombra da barba. – Como você está fazendo isso?

- Não lhe interessa. – Ele puxou Sofia e Emelina foi atrás. Alice o observava de longe em negação ao que presenciara.


Edgar ignorou o falatório da irmã e suas tentativas de desprender Sofia de suas mãos fortes até a escada. Sofia não manifestava sua opinião, pois, mesmo não se interessando pelo conde, estava intrigada em demasia devido ao que ele lhe mostraria para justificar suas mudanças tão radicais. Então se deixou levar para descobrir o segredo. Os dois subiram as escadas.


- Sofia, venha aqui! – Emelina ordenou.

- Eu só preciso saber do segredo dele, será rápido! – Ela respondeu.

- Sofia! – Emelina passou por um serviçal que levava uma travessa e sequestrou uma faca de filetar. Aproximou-se dos dois no final da escadaria, avançando colérica e ligeiramente. Apontou a lâmina afiada na garganta de Edgar. No susto, seu irmão reagiu e a empurrou escada abaixo, mas devido ao conjunto ato impulsivo dos irmãos, a ponta da faca indiciu três centímetros no pescoço do Conde de Vyndegard, acertando alguns milímetros a sua jugular. Ela rolou os degraus até terminar inconsciente no primeiro piso.

- Ed? – Sofia presenciou o sangue dele escorrendo por entre seus dedos. – Emelina? – Então a viu desmaiada ou talvez morta no chão.


Edgar correu novamente para seu quarto. O espelho refletiu sua imagem ferida murmurando por socorro, todavia não conseguiu se expressar oralmente para o espelho. Então ele viu novamente outras presenças bem próximas a ele, como se já pertencesse àquela horda de criaturas disformes. Ed teve a ideia de usar o próprio sangue para escrever no vidro do espelho, pedindo para Zediva curá-lo. Por incrível que pareça, o espelho o curou. A ferida cicatrizou sem deixar vestígios. Os espectros desapareceram. Apenas seu traje estava sujo de sangue.


Flaureta, Gabriella Brunme, Kalest, Sofia, Irene e Alisha estavam reunidos em frente à escada. Emelina ainda respirava, mas não abriu os olhos. O Dr. Lesnin media sua pressão com os dedos e prestava os primeiros socorros. Surgiu no andar superior, em frente aos degraus, um homem loiro trajando um glamoroso chambre preto e aveludado. Ele usava uma bengala em mãos com uma pedra de ametista na empunhadura.


- Seu covarde! – O Barão de Aralde ameaçou subir, mas fora impedido. Estava tão irado que nem percebera que Ed havia mudado de aparência novamente.

- Não perca seu tempo, Kalest. – Calmamente, disse o conde. – Emelina nunca gostou de você.

- Pare de dizer essa loucura! – Gabriella ordenou ao filho. Ela estava claramente enojada com ele e com a situação, além de suas mudanças físicas inexplicáveis. Só não perdera a cabeça porque o Dr. Lesnin lhe assegurou que o caso da baronesa não parecia ser letal.

- Sofia disse que você estava ferido. – Gabriella avançou dois degraus observando o filho, preocupada, só que com aquele olhar vago de sempre, como se vivesse dopada com fortes calmantes. – Onde?

- É assim que me pergunta, mamãe? – Edgar se sentiu ofendido. – Sua primogênita tenta me matar com uma faquinha medíocre e você demonstra desdém pelo que ela fez a mim, mas repulsa pelo que fiz a ela ao me defender?

- Você é um ogro horrível! – Sofia gritou com ele, sentada no chão e chorando em cima do ventre de Emelina. – Deveria ter morrido!


Edgar girou os calcanhares e retornou para seu obscuro aposento. Trancou a porta e encarou o Espelho de Zediva. As presenças em sua volta acomodaram-se próximo a ele. Sussurravam algo que parecia uma crise de eructação mórbida. Uma das aproximadamente vinte entidades em seu quarto era Maria Rikster.


- Tia? – Edgar falou diretamente com ela.


Maria andou do canto onde estava até o leito do sobrinho, onde estava sentado. Sua boca escancarada como se tivesse morrido vociferando de dor também murmurava algo que ele não compreendia. Ela estava arroxeada como os cadáveres que morrem por asfixia. Seu cabelo mantinha-se ajeitado por um coque armado. Um monstro elegante seria a melhor definição para a nobre mulher nesse momento. Enquanto andava, Edgar notou que ela capengava com as duas pernas. Parecia um peão de crinolina aberta, dando volume à saia do vestido escuro e longo. Sua bela face estava frente a frente à face mórbida da tia. Ele sentiu um hálito gélido com cheiro de madeira e enxofre emanando de sua garganta abissal.


- Alice estava falando sério? – Edgar perguntou a ela. – O espelho lhe tirou a vida?


Maria Rikster balançou a cabeça confirmando. Ed então se aproximou do Espelho de Zediva. Ele não estava furioso. Nem com medo. Conseguiu se tornar um belíssimo homem, alto e forte. No mesmo dia foi moreno e loiro. Tornou-se confiante sem experiência prévia. Mas ainda não estava satisfeito. Mesmo tendo tudo o que pedia ao espelho, sentia não ter nada. Era um vazio enorme que sua fortuna e título nobiliárquico não preenchiam. Nem sua aparência preenchia ou sua confiança. Ele já não sabia quanto tempo de vida teria, pois fragmentara diversas vezes sua expectativa de vida. Fez o que, para ele, seria o último pedido à Zediva.


- Eu não quero temer a Morte!


Os cabelos loiros do Conde de Vyndegard oscilaram como se recebessem uma leve corrente de ventania fresca que partiu do vidro do espelho. Dessa vez ele não sentiu dor.


- Falta muito tempo para você me levar? – Ele perguntou cercado por todos os espíritos disformes que estavam presos ao espelho. Presumivelmente foram antigos usuários atrás da perfeição, assim como sua tia, Maria Rikster.

- Logo você se juntará a nós. Fico satisfeito que tenha aceitado de bom grado. – Zediva lhe respondeu.



QUARTO FRAGMENTO FIM

Para conservar o mínimo de decência que restara da família Brunme, Gabriella e Flaureta fecharam as portas do grande salão. As amigas de Emelina retornaram para o baile a fim de espalhar uma falsa sensação de que tudo estava tranquilo na residência dos Brunme. Kalest foi para o hospital acompanhando sua esposa. Enquanto isso, sozinho em seu quarto, Edgar defrontava sua imagem no Espelho de Zediva. Sua ambição exacerbada lhe fizera perder muito em apenas um dia. Ele nunca se amou, então não havia motivos para que os outros o amassem. Ele nunca fora gentil, então nunca recebeu a reciprocidade verdadeira, a não ser de sua tia Maria ou da mãe. Talvez certo agrado de Flaureta. Todas as escolhas em sua vida repassavam como um filme em câmera acelerada na mente de Ed Junior.


- Edgar? – O espelhou indagou.

- Sim? – Ele sussurrou ao espelho, inexpressivo. Olhos vazios.

- O demônio não é feio como creem as pessoas. O demônio é o mais belo dos anjos de Deus.


Edgar se levantou calmamente da cama e puxou um baú que estava abaixo dela. Com uma chave que pegara da gaveta ao lado da cabeceira do leito, abriu o baú. Puxou vários itens metálicos depositados nele até sacar um longo cano da parte mais profunda do recipiente. Ele tinha em mãos uma carabina Winchester. Ela já estava com munição. Edgar apenas a destravou e saiu do quarto. Gido estava parado próximo à sua porta. Quando se deparou com o patrão portando um rifle, ele retirou o chapéu da cabeça e uniu ao peito, assustado.


- Senhor Brunme?


Ed disparou contra o homem, acertando-lhe a face. O criado morreu na hora com uma grande ferida facial expondo os ossos, a língua e as córneas saltadas para fora. A orquestra de Santurlé amenizou consideravelmente o som do disparo. Ele prosseguiu para a escada. Não havia ninguém mais por lá. Então desceu os degraus e abriu a porta do grande salão. Os convidados viram o homem loiro, alto e bonito segurando uma carabina. Os Winchesters logo perceberam que era de fabricação de sua companhia bélica.


-Sofia! – Edgar gritou. Não gritou com ódio, foi um grito mecânico. Apático. Seus olhos procuraram por ela. A orquestra cessou. E lá estava Sofia, próximo à Irene e Alisha.


O conde disparou o rifle na direção de sua amada e, na confusão, acertou pessoa alheia. Todos os convidados dissiparam-se pelo grande salão. Ele fez questão de não perder Sofia de vista. Disparou novamente e acertou a lombar de Alisha. A dama caiu no chão. Berrou silenciosamente, engasgada com o próprio sangue que saia da garganta. Chorou, estendendo o braço para Irene. Edgar atirou mais uma vez e arrancou o braço estendido de Alisha, que caiu de face no chão, desacordada, broncoaspirando o próprio sangue derramado. A sociedade murmurou misericórdia ao Conde de Vyndegard.


Ele apontou para Sofia, encurralada na pilastra de mármore.


- Você me desprezou a vida inteira!

- Mas eu não sou obrigada a amá-lo! – Mesmo naquela situação desfavorável à mulher, ela retrucou.

- Contudo não precisava ser uma víbora comigo a vida inteira! Você, minha irmã, suas amigas e toda essa sociedade hipócrita. – Ed pisou em Alisha, que estava praticamente morta. O corpo estava envolvido numa poça de sangue escuro.

- Edgar, meu filho, pare. – Gabriella se ajoelhou no chão.

- Mamãe, vá para o seu quarto! – Ele ordenou.

- Eu não posso, querido. – A condessa disse chorosa.


Ed apontou a arma para a cabeça de Sofia. Sentiu algo penetrar seu cotovelo direito e ele largou o rifle instintivamente. Flaureta usou a colt de seu avô para ferir o patrão. Os homens foram para cima do conde e o espancaram. Separaram-no da arma e somente deixaram de desferir golpes em Edgar porque Gabriella gritou.


- Vou chamar a polícia. – Gilbaran Lamarke comentou, retirando-se do recinto para fazer a ligação.


Edgar Brunme foi julgado e condenado pelos crimes de assassinato de Gido Baker, Alisha Macdone e Markus Lutherbel. Além dos três homicídios, fora condenado pela tentativa de homicídio contra Emelina Brunme, que ficara paraplégica após a queda. Sua declaração de legítima defesa contra a irmã caiu em esquecimento após as mortes subsequentes. O magistrado que o condenou era conhecido do pai de Sofia, que não perdera a vida naquele dia por sorte. Edgar fora sentenciado à pena capital. Até sua sentença final, passaram-se sete meses. A data de execução fora marcada para o dia 8 de março de 1880. Seria executado com uma bala na cabeça. Em momento algum Edgar pediu clemência. Estava pronto para morrer.


Em sua última noite de vida, ele pediu um barril de vinho e uma taça. Sua vontade fora feita. O Conde de Vyndegard bebeu por uma hora. No reflexo da bebida pôde enxergar os espectros do Espelho de Zediva lhe acompanhando. Estavam sempre ao seu lado, vigiando-lhe como seus únicos companheiros. Edgar viu sua antiga aparência de ogro trajado no reflexo do vinho em vez do homem loiro, alto e bonito. Sua boca entortou e esticou exageradamente, dilatando a distância entre as mandíbulas superior e inferior. Ele eructou. Roxeou, sentindo uma forte dor no peito e na cabeça. Os pulmões deixaram de recepcionar oxigênio. Os dedos das mãos e dos pés retorceram até quebrar, as juntas das pernas romperam e ele sucumbiu morto no chão álgido da cela.


- Santo Deus! Que coisa horrível! – O guarda se expressou espontaneamente por trás das barras de ferro, espavorido com a imagem que vira de Edgar Brunme.


Sofia de Bardanhain vestia seu habitual chambre branco felpudo. Ela escrevia uma carta endereçada para Emelina, a Baronesa de Aralde. Desculpava-se com ela, expressando que os melhores momentos de sua vida, Sofia passara ao seu lado. Mas agora tinha que seguir em frente, pois até Emelina casara. Ela pôs o selo dos Bardanhain para lacrar a carta. Levantou-se e caminhou para frente de um grande espelho de bronze com tentáculos pontiagudos recostado na parede de seu aposento.


- Pronto! – Disse Sofia ao espelho. – Faça-me sentir atração por homens! Eu não quero ser repudiada pela sociedade.

 
 
 

5 коментарів


Thomas Calvino
Thomas Calvino
16 вер. 2019 р.

Texto incrível, a historia é muito bem conduzida, parabéns!!

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Thiago Vilela
Thiago Vilela
29 лип. 2019 р.

Seu texto é sensacional, a forma como vai nos levando pra dentro da história, a inclusão dos personagens no momento certo, a forma com que descreve cada um deles.. Ficou muito fácil criar aquilo tudo na mente como um filme! Sobre a história, o que uma pessoa é capaz de fazer pra satisfazer as suas vontades, você mostrou isso perfeitamente. Aquele final, o medo que ainda hoje sentimos da sociedade e que nos faz fingir ser outra pessoa. Foi tudo perfeito, PARABÉNS!

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fernandomello
06 бер. 2019 р.

Muito bom. Bem escrito, bem estruturado, prende o leitor e demonstra enorme criatividade. Não tenho dúvidas de que será fenômeno. Sempre teve talento pra invenções e contar história. Parabéns!

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Guilherme Carriço
Guilherme Carriço
26 лют. 2019 р.

a cada fragmento o conto melhora mais e mais, gostei e estou ansiosoo pelo final

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trevor.cadastros
25 лют. 2019 р.

Adorei a forma de escrita. Realmente conseguiu me prender até o final, já estou no aguardo da continuação. Muito bom mesmo!

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